20 de dezembro de 2005

A manhã.

__Uma fotografia é o registro visual congelado de um enésimo de segundo acontecido no passado. — Afirmar isso, tão somente isso, é o mesmo que dizer: toda água é poça. Por isso, prefiro arriscar-me em outro conceito: que mar se esconde por dentro de cada gota!

__Assim, a “fotografia” que guardo em todas as gavetas de meu cérebro, revela: tal como a criança que foi criada entre quatro paredes — e que um dia foge ao jardim, quando também é surpreendida pela primeira estação presenciada, que é a primavera nascente — diante de tanto novo a criança não sabe por onde andar, ou que canção entoar perante o desabrochar de flores aos primeiros raios de sol tropical. — Ela simplesmente inventa a música de forma desajeitada, contudo verdadeira.

__E se com a aurora evapora o orvalho dormente em folhas, logo vem o efeito da matina, que causa o arrepio, que provoca o abraço, pelo qual as curvas de dois corpos se complementam num tenro e demorado amálgama.

__Dizem os físicos que o calor de um corpo tende a igualar à média para com os graus do outro. Mas não souberam os físicos, e quase lá os químicos, da falha na matrix, que é o efeito gerado acima das temperaturas originais. — Somam-se, multiplicam-se, potencializam-se, infinitizam-se, e tampouco os matemáticos puderam equacionar tal progressão fantástica.

__Tanto tempo que se passa poderia confundir o distraído, que pensaria que aquela cena é uma fotografia. Mas não. — É que nós apenas nos mantemos...

__Vem a chuva à metrópole cobri-la cheia de remorsos trovejantes. Porém, até mesmo ela se encanta, e dá a trégua. Chama o sol, que vem espiar-nos por algumas fendas surgidas na densa massa cinzenta, por onde logo projeta suas cortinas cintilantes, como holofotes até então abandonados.

__E se era cidade? Sim. — Mas a chuva favoreceu-nos com sua presença na madrugada. As águas lavaram e levaram pra longe os ares outrora poluídos, para que respirássemos apenas o que merecíamos: o perfume de nossos pescoços, faces e lábios, tão unos, indizíveis.

__Enquanto isso, sol e chuva, opostos necessários, entram em comum acordo para que ambos presenciem o instante: como ele, admirado, mesmo imponente, não conseguiria brilhar mais que o momento, ela não iria despencar cachoeiras, para não forçar o término da ocasião. — Partem a manhã ao meio, ao mesmo tempo, e com isso nos dão de presente as sete cores do arco que nos determina a aura.

__Novamente pensariam os desatentos que aquela cena fixa e mantida seria uma fotografia. Mas o tempo não se deixa enganar. — “Parece ter passado um minuto!” Ou: “Queria tanto parar as horas!”

__Entretanto, se por um lado ele pode passar por vilão, no fundo somente quer semear a saudade, o desejo; para que não haja apenas uma foto, sozinha e egoísta, para unicamente aquele instante — e sim inteiros jardins, filmes para inspirar diversos outros sonhadores.

__No fundo, o tempo compreende a teoria das ricas gotas d’água: à beleza verdadeira quer uma vasta planície, inteiramente coberta de flores, extensa, crescente e imortal. Quer, para trás, cores de densas lembranças; à frente, primaveras a perder de vista.

A lava lava, lavra e semeia.

10 de dezembro de 2005

Rir e chorar, sorrir e sonhar.

Engraçado é ter me formado numa escola de propaganda tendo louvor por ter relevado o maior publicitário da humanidade: o medo.


Hoje, uma parte de mim chora, verte lágrimas, deixa tenso, me faz querer gritar. Sabe quando se faz aquela cara icógnita, indefinida, que por um milímetro de feição alterada pode se tornar de choro pra riso, ou de gargalhada para dor profunda? Este sou eu agora.


Sou eu, porque quero chorar, a alegria é tamanha! Porém, o riso que estampa na cara, que vem do alívio, da boa nota, da indicação, da redenção, do redimir, das diversas situações engraçadas ocorridas, torna-se superior ao choro que lateja. E de tão pungente que é esta lágrima, pressiona a sensação intensa para a cara, querendo implodir minha face em prantos comemorativos, e por isso fico pulsante, irritante, mas com boas causas. Mas este cá sorriso não se deixa morrer.


Tudo foi muito novo, inesperado, divertido e autêntico. Como conseqüência, o sorriso — que parece falso, de tão constante e inalterável —, o sorriso que não vacila, que permanece, não deixa um segundo sequer a força dos músculos do rosto ceder à tentação do choro que quer a sua vez. É a briga, a luta interna; são dois vulcões querendo explodir sobre o outro. E que bom que esta seja a luta; é o sorriso de uma felicidade pura, que, como dizia Machado de Assis, é como tirar um sapato apertado ao final do dia — eis a felicidade gratuita e acessível a todos.


O receio causa alívio. Uma parte de mim está aliviada. Mas fosse tão somente, estaria como num dia qualquer acrescido de uma linha a mais em meu currículo. Por ontem, o tal "rir pra não chorar" fugiu do sentido pejorativo para definir meu atual estado de alegria intensa, nunca sentida, nunca provada, nunca deliciada. Não apenas venci os quatro anos de experiência e desgaste, como transpassei às minhas próprias expectativas, superei a mim mesmo, assassinei o superego onipresente, e tudo foi num momento decisivo onde a necessidade de eliminar o comum foi mais forte que o comodismo do fazer-por-passar.


[...]


Resta-me deixar em branco a frase intacta, mas recicladamente aproveitada, de Stendhal, autor d'O Vermelho E O Negro, para fechar com oportunista ambigüidade, graças à circunstância, e também para deixar a quem ler a livre interpretação contextualizada. "A maior parte dos homens do mundo, por vaidade, por desconfiança, por medo da infelicidade, só se entrega ao amor de uma mulher após a intimidade."

Dois vulcões quando escrevi. Três, quando postei.

5 de dezembro de 2005

Linha de produção.

O velho barbudo tem os cabelos mal penteados. Seu jaleco prende seus braços cruzados por dentro da vestimenta, numa posição eterna de um carateca prestes a cumprimentar seu adversário. Ele não parece ter desviado os olhos do chão desde que entrei na fila.

Quer dizer, não tenho certeza sobre o tipo de jaleco. Deve estar na moda jaleco com fivelas de cintos nas costas.

E, pra falar a verdade, nem mesmo eu pareço poder me mexer. Exceto o pescoço, que movimenta com a cabeça, quando olho para os lados.

Quando optei por entrar nessa fila, o discurso utópico da placa me fez acreditar que era o caminho mais rápido para a felicidade sem culpa ou moralismo. No início, estranhei o fato desta ser menor que a fila do lado; depois, passei a acreditar que o maior volume de pessoas na outra opção era culpa da característica humana do espiral do silêncio — dom que poucos nasceram sem. De qualquer forma, acreditei que, fila menor, discurso melhor, o negócio estava garantido.

Mas descobri serem os filósofos uns publicitários de falsos produtos. Cheguei a ser discípulo de uma marca, a marca “sem marca”, e com toda a sacada imagética e textual me fizeram crer na felicidade rápida e indolor da opção escolhida.

— Mas é tarde para voltar, diz a voz do amigo que vem logo atrás de mim.

E realmente. São sistemas que não se interagem. Dá pau. Dá tiro. É preciso começar do zero, morrer.

Descobri sem aviso prévio de que a ilusão da fila com menos gente e da felicidade livre de amarras simplesmente... não anda.

A fila ao lado perde seu fim onde os olhos não alcançam. É gente feliz, comemorando a andança, o caminhar, fazendo suas seitas rotineiras. E não pára de andar, não pára. Na verdade é uma maratona sem muitas linhas tortuosas, cujo início ninguém sabe, e cujo fim só é sabido como um portal negro por onde quem entra não é mais ouvido falar.

Se tivessem nomes, aquela seria a fila da certeza.

A minha, a da dúvida.

Se, assim como as pessoas, todos os pontos ortográficos pudessem decidir, as exclamações, as exclamações triplas, as reticências, as vírgulas, as faltas de, os pontos finais, as faltas de, e toda a diversidade gramatical, estariam na fila que anda.

Exceto a interrogação, pelo motivo que já é esperado.

Disse meu amigo com um tom indefinido:

— Olha lá o cambista, de hábito. Olha o outro, com um carro debaixo do braço. Estão vendendo lugar na outra fila. Mas aquele vende mais barato, o das armas.

Os meus objetos de pertence, até então meus, somente até antes da escolha, foram deixados na inspeção de entrada. Para retirá-los, custam a minha consciência.

O que eles não puderam retirar são as idéias lidas, entendidas e reformuladas. Não posso garantir que muitas originais não interfiram e se misturem na memória. Mas, ah!, se o poder destes conceitos fizessem andar a fila!

Há muito tempo que estou no mesmo local. O que me distrai é meu radinho. Ele toca algumas canções de amor, amor de todos os tipos. Na verdade, não é declaradamente de amor o tema de cada música, porém é aquilo que eu suponho ser o amor. Lá, do outro lado, talvez tenham a mesma idéia sobre isso, mas desse temos o cansativo, doloroso e até desolador fado de ter que dar sentido à palavra Amor. Quem se empenha, muitas vezes consegue. Mas ninguém daqui desta margem sabe ao certo o que passa por dentro de cada um para saber dizer se foi mesmo o amor que levou um companheiro de fila para a parte boa da vida. Ou seja, até hoje, por trás da indumentária colorida não se sabe ao certo se era a parte boa.

O povão do outro lado acredita que sabe o fim daqueles aos quais eu provavelmente engordarei a relação. E falam com pesares ou sarcasmo apontando suas espadas aos nossos pescoços; pais de família, quando notam suas filhas direcionarem uma lasca de brilho a nós, já sacam seus revólveres; nós, querendo trazer mais cor a este lado, pensamos em trazer a filha; porém, este é o time da interrogação. Até da paixão se duvida, mesmo vivida intensamente. De qualquer forma, não tenho a espada para lutar de igual pra igual; ele já tomou minhas bainhas no ato de pronunciar os sarcasmos referentes à minha condição.

O fim, quando não se pula o muro, é certo: as meninas superprotegidas irão seguir o que já destinavam. Lá é a região da preguiça e inércia. Já, deste lado, ainda é questão.

A desilusão por tantas noites nos assola, que a tristeza do não-chegar-logo não me permite empregar Amor ao nome desta fila.

Pensa vem, pensa vai, e uma garra de três lâminas veio sorrateiramente da escuridão do firmamento e puxou pela cabeça o velho que estava à minha frente. Começo a duvidar de minha sanidade quando ouço vozes. Elas dizem: Este aqui já não vai bem; Mal fala direito; É sujeira; É revolta; É visionário; Não há lugar pra mais messias; Sim, jogue no lixo.

Tive o triste prazer de lê-lo, o velho, muito tempo depois, numa biblioteca. Porém, era um sonho. Na vida real, o minimalismo do conceito da esteira de fábrica continuava funcionando.

De todas as frases já lidas até hoje, nada resume mais o ser humano, em sua racionalidade cega, que a do Orwell de 1984: “A ignorância é força”.



A lava lava. Preciso de lava.

27 de novembro de 2005

Pequena.

Só de tu vires tratar de rotina

Fico feliz de ouvir futilezas;

Me abro quão flores à luz da matina

Pra receber-te, teu pólen, leveza.


Quando notei-o, um bosque crescido

Vi que, pequena, driblaste a noção

E o zum zum, que até fora ruído

Hoje é sorriso, promessa, canção.


Se piscas, voa, me leva onde fores

Bata as asinhas e deixa-me tonto;

Se o pó que fecundas causa-me amores

És minha fada, pois sendo o meu conto.


No escuro, porém, te gamo calado

Desejo progride; fazer que me tarda

Quero dizer-te o que tem me inspirado:

Existe um jardim que à estufa te aguarda.



A lava germina.

27 de outubro de 2005

Sem re visão. Uma nova.

Eis-me novamente aqui.

Olá, solo. Olá, água. Olá, ferida. Façam-me doer a alma, pois preciso disso para me sentir ainda vivo. O meu desejo já não é mais meu guia. Tampouco meu conselheiro. Ele está engordando, envelhecendo, cobrindo-se, mumificando-se, até o dia que ele resolver, vinte anos mais tarde, acordar, correr até mim — não será necessário muito, garanto — e, como amigo que diz tudo na cara, fazer-me derreter as lágrimas que estancaram e amargaram no fundo dos olhos fechados, atados por opção.

Permitam-me o pudor. Eu aprendi a gostar dele. Ele sensibiliza. Como dizia Fernando Pessoa, o pudor está para a sensibilidade assim como o obstáculo para a energia. Permitam-me o pudor. Quero voltar a ficar vermelho de vergonha perante uma mulher desejada, dessas que não se vê todo dia nas ruas, mas sim no coração, quero ficar embaraçado ao perguntarem sobre o quê escrevo, não sobre a que sou pago, mas sim meus sonhos, quero poder imaginar ter filhos daqui quinze anos, desses baderneiros e que não merecem ter pais trabalhando o dia todo, enfim, eu quero querer. Nesse momento, eu não quero. Eu lembro querer. Eu lembro quantas vezes me apaixonei esperando o trem passar — muitas, por cinco segundos —, quantas vezes deixei escapar uma gotinha de lágrima no cinema naquela cena reconfortante — sendo apenas eu o herói do cinema, por sinal —, quantas vezes me senti o homem mais forte do mundo por poder responder com solicitude a uma pergunta de algum perdido na rua — eu lembro, inclusive muito longinquamente, de querer passar a vida ensinando e escrevendo, ensinando e escrevendo. São lembranças. Encaro como passado. Não podem ser passado. É isso que peço, meus amigos solo, água, e ferida. Sejam meus terapeutas por hoje, por essa noite, ou por quantas forem necessárias. Eu quero me curar. Eu quero voltar a ser o louco pelas coisas pequenas, ser o garoto do “isso passa”, ser o utópico reformado. Reformado por já ter um mínimo de experiência para não apenas dizer sem fazer, dos adolescentes. Eu, aqui em baixo, tento alcançar vôo. Não me façam subir, não me ajudem a levantar. Deixem-me. Eu aprendo. Ajudem-me não atrapalhando. Não quero gostar do sabor de meu rosto em sua lama, em seu fundo. Porque eu sei que, se for da outra forma, eu volto como prisioneiro de uma liberdade condicional. Lá em cima cortaram minha cabeça e deram-me um curativo. Quero sorrir para tais desumanos. Só que eles estão em maioria. Entende? Os policiais são maioria. Eu não sou um cidadão por natureza, eu não sou! Oh!...

Uma peneira para entrar numa editora. Disseram-me: responda ao teste psicológico, e respondi com 75% de “A”, 20% de “M”, 5% de “D” e zero de “S”. Seja lá o que for. É possível que alguém desconhecido me conheça mais que eu mesmo. Depois, disseram-me para escrever com letra de forma sobre qualquer tema. Creio que fui bem. A partir de então, começou o desespero. Tinha que, assim como os ouros vinte integrantes da dinâmica, responder o motivo de eu querer aquela empresa como meu objetivo. O filme é conhecido: “eu posso ser o primeiro”, para demonstrar iniciativa — eu prefiro ser o último, sempre, pois acredito no grande final e com orgulho —; e depois ouvi as mesmas barbáries, como “me falaram muito bem”, ou “é uma empresa que faz o que gosto”, ou “eu me identifico com a marca”, e por aí foi. Eu sabia que a minha resposta seria melhor que todas aquelas. Grande final, sim! Porém, o Claucio sedentário estava ativo. Eu te odeio, superego, eu te odeio. Comecei a tremer, de tão diferente que era; parecia que, da boca pra fora, nem eu mesmo acreditava no tal projeto que é um de meus sonhos, no meu futuro ideal e fora do comum que eu planejo todo dia quando acordo, no meu filho. O filho, a livro e a árvore, observando agora, parecem-me uma tríplice que, metaforicamente, diz: realize um grande sonho, faça-o ser uma grande história e faça-a dar frutos para os que virão. Por descobrir essa relação, deveria me orgulhar. Mas não. Eu te odeio, Claucio sedentário, Claucio cômodo. Hoje, enquanto pago tributos a você, continua a ser meu rei. Mas a prole se revolta, ouça o que eu digo. E quando tiver o poder das asas, me vingarei pelos olhares de pena que senti enquanto eu não transmitia segurança naquelas que pareciam palavras inventadas. A sensação calou-me pelo resto do processo. Não opinei, não argumentei, não apareci. Eis agora a grande sacada: se a minha redação me salvar, será um sinal de que seu poder se corromperá. Caso contrário, é apenas temporário. Continue correndo atrás do rabo, enquanto eu me sento. Num futuro, você me assistirá calado, da cova sepulto. Escreva isso. Ou melhor, deixe que eu escrevo.

O fracasso no processo pela empresa me fez ter um clarão platônico na caverna das sombras. Venha cá, Claucio colegial, e diga sobre o que me refiro. Diga aquilo que é relacionado ao fato de eu não querer ser hospitalizado.

“Eu perderia a corrida ajudando o manco a correr. Mas carregando, nunca. Quando os colegas de classe vinham a mim perguntando como se resolvia tal questão, com o objetivo de fato de aprender, era solícito até fazer o cara desenhar a fórmula de traz pra frente. Dava-me uma leve sensação de “cidadania” quando os via sorrir por ter alcançado o mínimo para não repetir de ano. Eu ficava feliz por compartilhar, secretamente, de seus sucessos. Mas o mesmo não ocorria com os encostadores; aqueles que se juntam ao seu grupo com o olho gordo de quem não faz a mínima pelo real aprender. Infelizmente, estes são em maior número que aqueles. Eu era um nerd, concordo. E parecia que estes não tinham ego suficiente para pedirem ajuda ou serem ensinados por mim. Eu respondia à altura, com desdém. Aí, claro, a imagem era a do nerd carrancudo, orgulhoso, convencido. Somente um punhadinho podia comprovar o contrário. Mas estamos numa democracia, na sociedade do espiral do silêncio, do grito. Logo, saí de lá com injustiça. Mas tudo bem, eu, no fundo, tinha pena. Mudei o meu curso e esqueci o pessoal. Ficaram apenas alguns na memória. Marcada mesmo foi a boa experiência de ter ensinado alguém. Acredito na teoria do caos, logo, sei que fiz diferença. Sei que fiz.”

Sim, sim. Inclusive, com o desempenho na dinâmica, isso aí me veio à mente. Tudo isso. Eu lembrei da minha indignação quanto ao modelo emburrecedor de ensino, quanto ao excesso de informação que temos que absorver osmoticamente, quanto à quase obrigação de se escolher um futuro aos 17 anos de idade no vestibular, e etc. Aí, me veio a imagem de um professor que ensina por acreditar na revolução, e não no professor que recebe pra ser professor. — Contei isso à minha mãe, e decidi então nunca mais lhe revelar meus planos utópicos. Ela enterrou os pés no chão. O meu chão é movediço, não posso pedir socorro a ela. — E então me pareceu ser o caminho ensinar e escrever, escrever e ensinar; e tais atividades permitiriam muito bem encaixar aquele “projeto pessoal”, do filho, do livro e da árvore, nos planos. — Mas... por onde começar? Acabo de entrar na reta final para me tornar um ninguém com diploma. Um diploma que está escrito a ouro todas as profissões que não quero seguir — mesmo sabendo que são essas as únicas que sei. Fazer jornalismo? Fazer pós? Aos 21 anos? Não é óbvio que sim. Mal terminei a faculdade, e já perguntaram ao Claucio sedentário o que ele fará no ano que vem.

“Olha, veja bem, eu pretendo seguir em frente com minha idéia de...”

“Idéia, tá maluco? Não esqueça que eu estou vivo!” (som de “tum tum, tum tum, tum tum”.)

“O que é esse ruído de tambor, Claucio-sedentário?”

“Não é nada não” (abafando com o terno), “não é nada. Só uma palpitação do coração, coisa que passa.”

E assim, os sonhos ficam dentro de um bolso, menores que a carteira. Ignorância é força. Quisera eu ser forte o suficiente para ser fraco. É preciso muita força para enxergar que, terminando esse processo de “ser alguém na vida”, apenas acrescentei um número aos ninguéns.

“Mas ser professor dá dinheiro? Escrever dá dinheiro? O brasileiro não lê! Você tem que se adaptar à realidade! Tudo o que eu quero é que cada um tenha seu dinheiro logo, ganhe bem, porque afinal vocês são inteligentes, com uma poupança, e, sim, ter uma vida normal!” — Eis o amor de mãe. Não duvidaria se eu tivesse que pagar o financiamento do quarto alugado, das roupas compradas, da escola, etc. (Eu até pagaria.) Quero um toque de arte na minha rotina. Pagaria com o lucro da arte. Se é que arte, num país como o que força ensino, tem arte na cesta básica. No meu quadro de vida — melhor que currículo — tem umas anotações e diversos diplomas; mas nenhuma uma cor. Nenhuma. Eu enxergo o espermatozóide — meu filho — fecundando o óvulo, eu ouço o bebê chorar, eu sinto seu cheirinho, eu sinto sua suavidade, mas o Claucio-sedentário está prestes a me castrar. Lá vem ele com a foice da afobação megalomaníaca da graduação. Ele e seus suportes, acessórios. Sobram qualidades organizacionais; faltam qualidades orgânicas.

Dizem que aniversário traz inferno astral. Esse deve ser o meu. Estranha sensação de de javu psicológico. Não é mesmo, solo, água, ferida? Todas essas palavras anteriores saíram de minha mente — as palavras, não as idéias — e deixaram-me com o eco. Mas, lembrando, são sensações conhecidas. Já passei por isso, né, água, solo, ferida, poço? Façam-me voar, me enlouqueçam de vez! O veneno é meu antídoto.

Tive um sonho. Um sonho muito belo, porém triste, por ser realidade. Sonhei porque admirei por muito tempo a beleza de uma foto. A beleza de certa mulher numa foto. Eis que no sonho eu admiro um roseiral que é todo feito de rosas vermelhas, exceto por duas brancas, posicionadas ao centro. Apaixonei-me pelas rosas brancas, que eram diferentes de todo o resto, que se destacavam por sua leveza tonal, que impossibilitavam o desvio do meu olhar a outra rosa qualquer.

Mas, aos poucos, adoeci. A fotografia já não me bastava. Eu desejava tocar as rosas brancas, poder acariciar meu rosto com suas pétalas, poder dialogar com seus espinhos e dedicar as mais belas canções àqueles dois objetos de atenção apaixonada. Então, pelo desejo de estar consigo, mergulhei na foto e subitamente estava na estrada que corria na tangente ao roseiral. Saí do percurso dela e me dirigi às flores. E então eu pude perceber o quão tolo tinha sido por delirar com aquela foto. Apenas a foto, quero dizer.

O vento arfava as pétalas não só das brancas, mas de todas as rosas, de tal modo que com a simples brisa eu podia sentir o seu perfume. Era o perfume da tranqüilidade, da completude, da idéia etérea e presente. Sensações que, mesmo com o arranhar de seus espinhos, não se podia deixar de sentir. As rosas também eram suaves ao toque; riscavam os dedos quando na haste, porém pediam desculpas com suavidade e maciez das pétalas. Quisera eu que os lençóis de todas as minhas noites fossem feitas de pétalas de rosas. Quisera eu também ouvir todos os dias antes de adormecer o som produzido pelo chacoalhar do roseiral; sua voz que soa, aos meus ouvidos, como um calmante sereno e aveludado. Quisera eu, por fim, que meu quarto fosse perfumado com o aroma delicado daquelas flores de meu sonho. Embebedar-me-ia nas sensações produzidas pelo conjunto de obras de arte que cada rosa compunha, pois percebi, com o mergulhar da foto, que não só do sentido visão sobrevive uma paixão. Que aquelas rosas brancas só são tão belas em relação à composição que formam com o restante vermelho. E que esse restante é indigno de ser chamado restante, pois apenas duas rosas brancas não produziriam o torpor romântico que somente o conjunto da obra faria. Uma foto apenas retrata o milésimo de segundo de um momento no passado; porém, os sentidos somente são envolvidos se este momento não se encerrar no passado, ou na pura somente lembrança, ou, pior ainda, na imaginação de um coração tímido.

E que faca de dois gumes tornou-se esta visão, com a análise deprimida de uma mente confusa. Pois se por um lado o sinestésico sonho infere que eu não deva me contentar com a lembrança e pensamento, ou seja, que eu deva experimentar as sensações do toque suave de sua pele, do perfume fresco de seus cabelos, da musicalidade reconfortante de sua voz e, sim, da beleza artística de suas formas, principalmente a de suas duas rosas brancas, por outro lado o sonho não representa o sentido faltante: o paladar de seu beijo.

O inconsciente zomba de mim. Tira sarro do que fiz e do que não fiz; aponta o futuro espelhando o passado, e eu, aqui, escrevendo como terapia, na tentativa de descompressão viciosa — o escrever como fuga, o escrever como cura, o escrever como negação à realidade. São diversas vozes em meu estado inquieto do presente.

“E te achas diferente. O homem dissipa sua desgraça criando desgraças imaginárias”.

“A arte, sim, a arte! O teatro foi o primeiro sopro que o homem inventou para se proteger da doença da angústia.”

“Oras! Tudo que consegui batendo a cabeça na parede foram galos.”

“Cale-se. As tragédias de cada são sempre de uma profunda banalidade para os outros.”

“Ouve-me: o que te separa, tu, de todo esse roseiral, ou melhor, de todas as sensações, sejam, flores, sejam montanhas, é a angústia.”

“Não ouviram a súplica inicial deste ser? Não ajudem-no a levantar. Deixem-no aprender com a sombria tristeza interior. Se chorar pelo sol à noite, não verá as estrelas.”

“Está certo. Não há motivos para percorrer o céu a procura de sua estrela. Põe-a lá.”




A lava lava, e sua força lança faíscas eternas ao céu.

As frases aspadas foram manipuladas como num diálogo entre os citadores Anne Hébert, Raymond Queneau, Alfred de Musset, Vergílio Ferreira, Jean Barrault, Rabindranath Tagore e Oscar Wilde, todas retiradas do site "Citador", vistas aqui.

18 de outubro de 2005

Campo magnético.

Por que magnético? O que seria um olhar magnético? Seria um olhar que exerce forte e inexplicável atração; um olhar encantador; um olhar fascinante? Seria. — Mas até aí, nada de novo; isso tem no dicionário. — Lá vou eu, porque as palavras têm dois sentidos: o usual-convencional e o pessoal-intransferível. Não ficarei no comum. Minha admiração não é comum. Tampouco ela é recente. Vamos ao pessoal.


Lembro do primeiro ano colegial, das conversas dos moleques.


“A Fulana é interessante por que é assim; a Ciclana é bonitinha porque é assado. Mas o olhar daquela...”. — A opinião, sempre com aquelas reticências que incompletavam a frase. Era o vazio, o silêncio de quem não soube dizer.

Ou melhor, o silêncio de quem teria vergonha de dizer e comparar os olhos dela àquilo que lhe veio à mente. Talvez não compreenderiam, e guardou consigo a associação. A associação e também a lembrança, de que seus olhos eram como dois buracos negros.


Guardou consigo porque não queria ter de explicar o que eram buracos negros.


“São regiões do universo onde qualquer corpo que nelas cair, nunca conseguirá sair. É um mergulho sem volta. Eis a semelhança com seus olhos. Uma vez olhado, nunca esquecido. De todo o universo, impossível desviar.”


Alguns anos depois, quando achou que tinha outros olhos, veio aquele par, novamente e ao acaso, aprisioná-lo. Achou que tinha amadurecido. De repente, viu-se como o menino de anos atrás.


Ei! Mas isso não se amadurece. É atemporal. É único. Porque algo não mudara. Não mudara aquela leveza, nem aquela icógnita, nem aquela escuridão misteriosa e, principalmente, magnética.


“Decifra-me. Ou te devoro.”


Socorro, me deparei com eles! ... — Mas... não me salve agora.


De todo o universo, impossível desviar. Impossível querer desviar. Mas, também, é impossível não querer, neles, todo dia mergulhar.







A lava lava. Queimar-me-ei?

19 de setembro de 2005

Os olhos ao poço

“A Caverna de Palimpsesto”

.

Quando a tinta me cai sobre a tela,

Não ser mão, papel, aquarela.

Quando o corpo voar pelo palco

Não será na pele o talco.

.

Pois à entrada daqui há uma placa

Que afasta o pobre ordinário

E o tolo fútil babaca

Do pau oco ao santo vigário.

.

.

“Camuflagem”

.

A caverna oculta segredos

Que não são do sólido rubro.

São dos mais densos negros

Que, por medo, venho e lhes cubro.

.

.

“Palavras guardadas estragam”

.

De olhos singelos me embasa

De utopias era minha fonte

Fora flama, e agora só brasa

Retirei as palavras do fronte.

E a mesma utopia me arrasa

Pois sen ti, fechei-me no monte

E a lágrima de meus olhos vasa

Pois lhe viram a sumir no horizonte.

.

.

“Dever incógnito”

.

Sem planos futuros

Porvir que me morre

Um fundo de furos

Tardar que me escorre.

.

.

Audiência e influência”

.

“O bem indica o norte

O mal implica à sorte”

E que bem ser esse, sentado

À TV, esperando-se a morte?

.

.

“Sombra sem luz”

.

Breu, Meu, Eu.

No escuro, por sem invisível.

.

.

“Dom parasita”

.

“Os valores pelos quais me estrago

Não são meus, mas deles dependo

“Celular, pois amor é pré-pago”

E aos poucos, às regras me prendo.

.

Lá em casa, pensando o poema

O corpo reclama cansado

“Eis-te, o grande dilema:

Ou tu a mim, ou tu ao teclado”.

.

Velo a idéia à tumba

Amor próprio viria a calhar

E então, um vazio, uma bunda

Cedi-me, comprei celular.

.

.

“Capitalismo”

.

Se ser é ter rim, e ter é sem fim,

São pretextos do corpo enfermo.

“Ter”, o “o”, junto a “mim”

De repente, temos o “Ter-mo”.

.

.

“Primeiro o poder, depois o dever”

.

O homem saiu do Animal

E riu-lhe: “Sou bem racional”.

Criou armas, dinheiro

E voltou às origens.

E acredita no emprego,

Na carreira, no devir,

Quando tudo é comer,

Beber, transar e parir.

.

.

“Rima não rima com embaixo”

.

Um passado promissor

Uma placa promíscua

E não escolhi:

O convir me encolheu.

.

A bunda, antes moribunda,

Me apetece, e compro um carro.

Distrações enquanto se espera,

Na fila, anunciarem “Próximo!”

.

.

“Inércia depressiva”

.

Quebrei a costela arrombando o fundo do poço.

.

.

“Aquela que domina os homens, em latim”

.

A lembrança viva de um par de janelas

Que de tão negras, voltei-me a rimar

Descongelo as veias, quão doces são elas

Livrei-me do denso, voltei a cantar.

.

.

“O negro do poço e o negro dos olhos”

Escrevo, porque o meu olhar pode salvar o seu, figurativamente.

Escrevo, porque assim fez o seu olhar ao meu, literalmente.

.



A lava, a larva, as asas.

18 de setembro de 2005

Eu ia poder estar podendo ir estar pegeando.

Tempo formando:

eu pegeio, tu pegeias, ele pegeia, nós pegeamos, vós pegeais, eles pegeiam.

Tempo formado:

eu pegeei, tu pegeaste, ele pegeou, nós pegeamos, vós pegeastes, eles pegearam.

Tempo bombado:

eu pegeava, tu pegeavas, ele pegeava, nós pegeávamos, vós pegeáveis, eles pegeavam.

Tempo formado-auxiliar-de-orientador:

eu pegeara, tu pegearas, ele pegeara, nós pegeáramos, vós pegeáreis, eles pegearam,

Tempo calouro/bixo:

eu pegearei, tu pegearás, ele pegeará, nós pegearemos, vós pegeareis, eles pegearão.

Tempo trancado:

eu pegearia, tu pegearias, ele pegearia, nós pegearíamos, vós pegearíeis, eles pegeariam

Tempo de motivador de grupo:

que eu pegeie, que tu pegeies, que ele pegeie, que nós pegeemos, que vós pegeeis, que eles pegeiem.

Tempo do grupo lamentando a reprovação:

se eu pegeasse, se tu pegeasses, se ele pegeasse, se nós pegeássemos, se vós pegeasseis, se eles pegeassem

Tempo do grupo que é vagabundo:

quando eu pegear, quando tu pegeares, quando ele pegear, quando nós pegearmos, quando vós pegeardes, quando eles pegearem

Tempo do professor que orienta:

pegeia tu, pegeie você, pegeemos nós, pegeai vós, pegeiem vocês.

Tempo corporativo (desculpa de estagiário pra faltar no trampo):

Pegeando.

Tempo do seu cérebro neste momento:

Pegeado.


11 de setembro de 2005

Buraco do Diabo.

O último ônibus cruza o cemitério à luz de um Finados. Zumbis fecham barracas, trancam janelas, apagam suas tumbas, e então resta à cidade apenas as velas acesas, cujo papel é cumprido pelos postes cor laranja que sinalizam por onde sonâmbulos devem caminhar.

Uma parte dorme para reservar-se ao árduo amanhã. Outra parte curte como bem ditada a noite foi. Outros vagueiam com suas yin-yangalmas à procura de saídas. Nenhum deles no campo de vista. A mim, somente marginários do centro.

Anhangabaú. “Buraco do Diabo”.

Silvícolas visionários.

Não há um carro em minha garagem. Por tal, não permaneci onde estivera há pouco e tive que retirar-me da companhia agradável. — É preciso muita energia a prostrar vigor por toda a madrugada. Nenhum problema, até então. São os bares que não agüentam. Para tanto, deixei a mesa em tempo suficiente para não encontrar apenas apagados Reservados e Garagens em disparada pelas ruas.

Tempo suficiente também para desapontar minha companhia, pois, sem poder deixá-la em casa, não soube ser convincente o bastante para levá-la à minha. Tudo bem. Ela não foi a primeira a recusar. O local não costuma atrair muitos além dos ratos. Faz aos outros o oposto ao que a mim.

“Já vai sair o último”, digo-lhe, e me despeço. Mais cinco minutos, e seria obrigado a passar a noite a pé.

“Por que é então que eu não lhe dei um beijo de dez?”

[...]

O último ônibus cruza o cemitério à luz de um Finados. Sou eu que saio por último antes das luzes do transporte se apagarem. Ele parte e some à esquerda. Agora, somos apenas eu, as chamas dessas velas altas e minhas dezenas de sombras. Que não são necessariamente projeções de meu corpo no chão.

Há algum tempo, pelo mesmo motivo logístico, fui obrigado a passar a noite em claro no escuro. Além de mim, bêbados suportando muros, perdidos de olhos vermelhos com narizes vacilantes, mendigos dormindo por sobre seus próprios ácaros, prostitutas fazendo companhias às baratas, e o uivo que se ouve pelo vento que risca o vão dentre os prédios que nos cercam. Acordei vivo, sim. Foi então que tomei a decisão de passar todos os luares no Buraco do Diabo.

Há rua. Há postes. Há janelas. Tudo ainda nítido, ou quase. Foque o horizonte, de tal forma que as luzes se espalhem por sua retina, e então verá nada mais que negro e faíscas cor de âmbar que tremem conforme o movimento aquoso de seus olhos. É a mesma impressão que tive quando fiz o mesmo dentro de uma capela com luzes apagadas e velas espalhadas. Agora, estes postes é que são velas ao alto de lápides invisíveis.

Estas chamas podiam ser pares de flamas. Podiam ser pares de olhos. O centro deste espiral, invariavelmente, sou eu. Palco de uma expectativa taciturna, agonizante, toda ouvidos aos toc-tocs de meus passos e aos suspiros que se inflam a cada respiro, como se o ruidoso mar soasse e interrompesse, soasse e interrompesse, variando silêncio espacial com gélidos assopros.

As garotas em seus trajes de praia se mexem quando passo ao lado; não é por isso que estou aqui. Um jovem se atribula quando me aproximo pela tangente; deve pensar que sou um desses à paisana. Um gato preto cruza meu caminho; ele deseja-me sorte e se mete numa briga de machos dali a pouco. É a hora em que animais falam mais alto.

O molho de chaves que puxo do bolso tilinta em soprano, como se um jogo de panelas fosse atirado com força a pratos de cristal. Do outro lado do quarteirão foi possível ouvir. Mas, enfim, chego ao prédio de destino.

Há um homem que chegou na minha frente. O porteiro mirrado pergunta a que veio; ouve e informa-lhe qual é o andar referente. Comigo, não questiona, e apenas libera a portinhola. Ele sabe que não estou ali por diversão; nem a trabalho; nem a outros assuntos. Enfim, ele me entrega a correspondência.

[...]

Subo as escadas, já sem a ânsia que sentia quando recém morador. No último corredor, um velho abandona o apartamento da direita com a mão nos botões de sua calça. Minha vizinha surge pouco depois com seu baby-doll brilhante e vermelho e me pergunta como passei o dia.

Após trancar as três travas da porta, finalmente estou em casa. Ativo somente o interruptor das luzes rubras e fracas, sequer de meia-luz, e caminho pelo apartamento sem lembrar das coisas invisíveis largadas pelo chão. Tento não apreciar o aroma de limpeza que destoa do bairro para não lembrar de que não consegui convencer minha companhia da existência de um oásis de conforto que tenho em meu poder. Puxo a cadeira e me sento à mesa que fica em frente à maior janela do cubo. Através dela vejo a Grande Chama, a maior da noite. O edifício que está após o cruzamento se ergue imponente de dentro do vale, e oprime as ladeiras de bicicleta que delimitam seu território. Sua estrutura comporta na base alguns faroletes que emitem ao céu raios de âmbar que iluminam indiretamente o prédio por toda sua “bealtitude”. Trocadilho inevitável. — Fica ainda melhor, pois a fraca e envelhecida luz de chama não compete esta noite com a prata que a lua dispersa pela superfície das estruturas. Hoje o satélite não surgiu, e o firmamento pôe-se negro a contrastar até com o fraco fogo que treme aos olhos do observador noturno. A visão, ainda que sombria, não pode ser mais bela: o velho centro, com toda a escuridão escondendo a sujeira, mas com abajures elétricos que realçam apenas os contornos exóticos da paisagem de concreto artístico.

Pego o papel e anoto: “É na zona morta que levanto-me das trevas.”

Daqui a pouco a minha vizinha, cansada dos ventres e com insônia, baterá à porta e pedirá para fazer-me companhia até o amanhecer. Mas, até lá, ficarei a respirar este silêncio e a admirar tais contrastes.





A lava lava. Ela vem de um buraco.

7 de setembro de 2005

Vai pela sombra.

A bondade dos que querem nosso enclausurado bem nos diz antes do caminho trilhado: “Vai pela sombra.” — No sentido objetivo da radiação solar.

Quando penso que a luz do astro-rei cega a alma daqueles que para ele olham, imagino que a sombra é mais que proteção: é o caminho alternativo, é a opção, é o livre arbítrio para aqueles que querem andar sem serem notados — pois a vantagem do louco é não precisar dar satisfação. Portanto, quando me perguntam para que lado devem ir, banco o idiota a indicar nem o norte nem o sul, mas o interior, o outro lado, aquele que se esconde atrás da razão que ilumina e preconceitua o que não atinge, ou seja, as tais sombras. Mas sem depender dos objetos, pois as sombras vivem tanto do sol quanto o mal do bem.

Caí num labirinto; já não sei o que indicar.

A lava lava com um brilho a-sombrador.

Nativa inativa.

Não um pulo na esquina. Nem uma visita à minha própria avó. — Lá naquela província ainda falam a língua que eu aprendi ser minha.

Mas esta minha (i)nativa está lá fora. Eu não sei pronunciá-la com fluência. Mas tenho viajado a la astronauta e falado dialetos familiarmente estranhos, ou estranhamento familiares.

Ainda sou estranho nesses novos planetas, mas sinto-me e casa. Cada música, uma cantiga de roda com a nostalgia da época que nunca vivi.

Posso ir e voltar num só fôlego só pelo espaço — esse vácuo que existe entre lá e o aí.

Acompanha-me?

Apaixonar-se por mim mesmo a homeopatia.

A lava lava. Ventos sulinos, levem-me até lá.

Velho lobo solitário do mar

Tempo frio e chuviscoso.

Eu não podia esperar melhor motivo para fechar-me solitário naquela Ubatuba. Trailer, cerveja escura, sopa e muita boa música. Eis minha semana fria na praia que vazia se manteve, para meu bel-prazer.

“Vou tomar umas latinhas e tomar coragem para encontrar o nada na praia de faróis apagados. Acho que estou resfriado, mas tudo bem.”

“Queria que ela estivesse aqui e passasse um dia frio comigo.”

Comecei a ler um livro estranho, mas 6 páginas foram tudo que consegui. Não podia me concentrar. O silencia me distraía, me traía, me atraía. Era sinal de que versos vinham em vagões fazendo chac-chac-chac-chac no horizonte alaranjado. Estava frio, mesmo assim.

“E se esse trailer for eu, e eu esteja criando pretextos para conhecer nova gente? Caminham algumas sombras por ali, apesar desse ermo. 'Esmo ermo.'”

“O corpo que busco foge conforme a idade. A barriga que pesa cada vez que corre atrás dela é culpa de sua cadeira do escritório, seu filho de putas!”

A lava lava. A cadeira suja.

A Dança dos Elementos

Ígneo. Relativo ao fogo; ardente; apaixonado.

Sim. Também, “apaixonado”.

Terra. Alicerce do planeta. E quem o sustenta? O que fá-lo não se derramar sobre a massa de sangue e luz que é digerida no cerne de nossos ventres?

Meu amado âmago — o berço do eu meu — tinha uma fonte. Que da outra margem do rio sorria calma e paciente. Quando a fonte foi tirada, a estrutura trepidou trambolhosamente. A balança pendeu como com tímpanos disfuncionados. Eram as lavas explodindo de dentro. Era o centro receoso de viver apenas de memória e ilusão.

Claro e escuro? Bem e mal? Branco e preto? (ou vermelho e branco? Ou vermelho e negro?) —Aqui não se completam. São algozes de algozes. O asco do carrasco. Uma serpente que se mutila pelo rabo. Eis eu.

Lava é fogo. Fogo é ígneo. E, sim, ígneo também é “muito apaixonado”. Pode o calor derreter a terra e fazer dela nova moldura, nova estátua imóvel?

Não se houver vento. Este assassino. Este apaziguador.

Régia. Seu meu apelido carinhosamente valorizante. Ela não sabia, mas desfilava. Ou seja, desfilava sem saber que era um desfile. Ou seja, ela caminhava. Para um público de muitos olhos.

Talvez ela notara. Mas silêncio não se enxerga. Olhar no horizonte, para não cruzar com um dos da platéia — que rima com alcatéia — fê-la não reparar que o estrépito silêncio da mente cobria e encobria o sereno explodir de sangue nas veias. Ah!, este sangue corrompido, sem o oxigênio da atitude, sem o titubear dos passos direcionados! Que venosa que é esta flama ígnea que me aquece e que, por encontrar ventos distantes de meu continente natal, também me sepulta. Estes ares de bondade e de vergonha vêm de longe, e correm vinte anos cada vez que o hoje ameaça o ontem. Pois este ainda teme a vitória daquele, pois está cada vez mais próxima, porém cada vez mais quase.

Régia. Que nome cabido: palácio. Eis o significado. E quem será o seu rei? Não eu serei.

Não? Eu, se... rei?

Não! Eu serei.

Não. Eu ser.

Ei!

Pois aqui, no meu reino diplomático, social, bem-educado, há nas fronteiras uma montanha construída durante quinze anos (parada há 5). Foram ventos ultraviolentos de bondade cristã que tufanizaram a poeira e amontoaram-na nos cantos, para que nem meu reininho fosse invadido, nem porém transpassado. São picos de cinzas. São cumes sem cor, vestígios de passados que nunca existiram, mas propagados foram.

Familiares deram-me uma bússola infalível, mecânica, que sempre ao norte aponta. Daí deduzi que os ventos que me afligem são do norte.

Há vezes que o vulcão adormecido no coração deste reino explode e lança partículas de homem acima do topo do Monte Pueril. Pueril, de “pó”? Só assim um pedaço de inconsciência pôde enxergar além da cordilheira circundante de cinzas. E eu, que cri estar sempre à frente, descobri para surpresa, iluminação e desespero que invariavelmente estava atrás da poeira (ignorância é força).

A Dança da Chuva incrementou em mim a fé nas forças divinas e internas, o deus que em mim adormece. A água da turbulência transformaria a montanha em lama. Mas, cuidado!, pois pisá-la movediça é perigo de imobilidade. Estar acima, como águia, seria somente um trabalho para os ventos do Sul, que são de baixo, “baixos”, opostos aos do norte. Graças às asas crescidas da inconformidade, faria transpor as barreiras — fossem raízes morais, fossem mortalhas de grife.

Régia desfilava, para todos. Régia sumia no horizonte, para mim. E as quatro forças se levantavam dilacerantes, sem mal ela saber. Claro, pois quem acreditaria num coração que se diz maior que todos os pares de olhos e maior que todos os corações? Pois o que de menos há são reinados sem muros ou cemitérios. Minha angústia era por ser excluído e, assim, poder — desculpem-me a redundância que vem agora — brincar com terrenos, chuvas, ventos, lavas, e razões, emoções, pensamentos, paixões.

Estados em guerra, territórios em conquista. A dança dos elementos me recarrega.


A lava lava como água à cinza.