19 de setembro de 2005

Os olhos ao poço

“A Caverna de Palimpsesto”

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Quando a tinta me cai sobre a tela,

Não ser mão, papel, aquarela.

Quando o corpo voar pelo palco

Não será na pele o talco.

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Pois à entrada daqui há uma placa

Que afasta o pobre ordinário

E o tolo fútil babaca

Do pau oco ao santo vigário.

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“Camuflagem”

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A caverna oculta segredos

Que não são do sólido rubro.

São dos mais densos negros

Que, por medo, venho e lhes cubro.

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“Palavras guardadas estragam”

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De olhos singelos me embasa

De utopias era minha fonte

Fora flama, e agora só brasa

Retirei as palavras do fronte.

E a mesma utopia me arrasa

Pois sen ti, fechei-me no monte

E a lágrima de meus olhos vasa

Pois lhe viram a sumir no horizonte.

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“Dever incógnito”

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Sem planos futuros

Porvir que me morre

Um fundo de furos

Tardar que me escorre.

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Audiência e influência”

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“O bem indica o norte

O mal implica à sorte”

E que bem ser esse, sentado

À TV, esperando-se a morte?

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“Sombra sem luz”

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Breu, Meu, Eu.

No escuro, por sem invisível.

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“Dom parasita”

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“Os valores pelos quais me estrago

Não são meus, mas deles dependo

“Celular, pois amor é pré-pago”

E aos poucos, às regras me prendo.

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Lá em casa, pensando o poema

O corpo reclama cansado

“Eis-te, o grande dilema:

Ou tu a mim, ou tu ao teclado”.

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Velo a idéia à tumba

Amor próprio viria a calhar

E então, um vazio, uma bunda

Cedi-me, comprei celular.

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“Capitalismo”

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Se ser é ter rim, e ter é sem fim,

São pretextos do corpo enfermo.

“Ter”, o “o”, junto a “mim”

De repente, temos o “Ter-mo”.

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“Primeiro o poder, depois o dever”

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O homem saiu do Animal

E riu-lhe: “Sou bem racional”.

Criou armas, dinheiro

E voltou às origens.

E acredita no emprego,

Na carreira, no devir,

Quando tudo é comer,

Beber, transar e parir.

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“Rima não rima com embaixo”

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Um passado promissor

Uma placa promíscua

E não escolhi:

O convir me encolheu.

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A bunda, antes moribunda,

Me apetece, e compro um carro.

Distrações enquanto se espera,

Na fila, anunciarem “Próximo!”

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“Inércia depressiva”

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Quebrei a costela arrombando o fundo do poço.

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“Aquela que domina os homens, em latim”

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A lembrança viva de um par de janelas

Que de tão negras, voltei-me a rimar

Descongelo as veias, quão doces são elas

Livrei-me do denso, voltei a cantar.

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“O negro do poço e o negro dos olhos”

Escrevo, porque o meu olhar pode salvar o seu, figurativamente.

Escrevo, porque assim fez o seu olhar ao meu, literalmente.

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A lava, a larva, as asas.

18 de setembro de 2005

Eu ia poder estar podendo ir estar pegeando.

Tempo formando:

eu pegeio, tu pegeias, ele pegeia, nós pegeamos, vós pegeais, eles pegeiam.

Tempo formado:

eu pegeei, tu pegeaste, ele pegeou, nós pegeamos, vós pegeastes, eles pegearam.

Tempo bombado:

eu pegeava, tu pegeavas, ele pegeava, nós pegeávamos, vós pegeáveis, eles pegeavam.

Tempo formado-auxiliar-de-orientador:

eu pegeara, tu pegearas, ele pegeara, nós pegeáramos, vós pegeáreis, eles pegearam,

Tempo calouro/bixo:

eu pegearei, tu pegearás, ele pegeará, nós pegearemos, vós pegeareis, eles pegearão.

Tempo trancado:

eu pegearia, tu pegearias, ele pegearia, nós pegearíamos, vós pegearíeis, eles pegeariam

Tempo de motivador de grupo:

que eu pegeie, que tu pegeies, que ele pegeie, que nós pegeemos, que vós pegeeis, que eles pegeiem.

Tempo do grupo lamentando a reprovação:

se eu pegeasse, se tu pegeasses, se ele pegeasse, se nós pegeássemos, se vós pegeasseis, se eles pegeassem

Tempo do grupo que é vagabundo:

quando eu pegear, quando tu pegeares, quando ele pegear, quando nós pegearmos, quando vós pegeardes, quando eles pegearem

Tempo do professor que orienta:

pegeia tu, pegeie você, pegeemos nós, pegeai vós, pegeiem vocês.

Tempo corporativo (desculpa de estagiário pra faltar no trampo):

Pegeando.

Tempo do seu cérebro neste momento:

Pegeado.


11 de setembro de 2005

Buraco do Diabo.

O último ônibus cruza o cemitério à luz de um Finados. Zumbis fecham barracas, trancam janelas, apagam suas tumbas, e então resta à cidade apenas as velas acesas, cujo papel é cumprido pelos postes cor laranja que sinalizam por onde sonâmbulos devem caminhar.

Uma parte dorme para reservar-se ao árduo amanhã. Outra parte curte como bem ditada a noite foi. Outros vagueiam com suas yin-yangalmas à procura de saídas. Nenhum deles no campo de vista. A mim, somente marginários do centro.

Anhangabaú. “Buraco do Diabo”.

Silvícolas visionários.

Não há um carro em minha garagem. Por tal, não permaneci onde estivera há pouco e tive que retirar-me da companhia agradável. — É preciso muita energia a prostrar vigor por toda a madrugada. Nenhum problema, até então. São os bares que não agüentam. Para tanto, deixei a mesa em tempo suficiente para não encontrar apenas apagados Reservados e Garagens em disparada pelas ruas.

Tempo suficiente também para desapontar minha companhia, pois, sem poder deixá-la em casa, não soube ser convincente o bastante para levá-la à minha. Tudo bem. Ela não foi a primeira a recusar. O local não costuma atrair muitos além dos ratos. Faz aos outros o oposto ao que a mim.

“Já vai sair o último”, digo-lhe, e me despeço. Mais cinco minutos, e seria obrigado a passar a noite a pé.

“Por que é então que eu não lhe dei um beijo de dez?”

[...]

O último ônibus cruza o cemitério à luz de um Finados. Sou eu que saio por último antes das luzes do transporte se apagarem. Ele parte e some à esquerda. Agora, somos apenas eu, as chamas dessas velas altas e minhas dezenas de sombras. Que não são necessariamente projeções de meu corpo no chão.

Há algum tempo, pelo mesmo motivo logístico, fui obrigado a passar a noite em claro no escuro. Além de mim, bêbados suportando muros, perdidos de olhos vermelhos com narizes vacilantes, mendigos dormindo por sobre seus próprios ácaros, prostitutas fazendo companhias às baratas, e o uivo que se ouve pelo vento que risca o vão dentre os prédios que nos cercam. Acordei vivo, sim. Foi então que tomei a decisão de passar todos os luares no Buraco do Diabo.

Há rua. Há postes. Há janelas. Tudo ainda nítido, ou quase. Foque o horizonte, de tal forma que as luzes se espalhem por sua retina, e então verá nada mais que negro e faíscas cor de âmbar que tremem conforme o movimento aquoso de seus olhos. É a mesma impressão que tive quando fiz o mesmo dentro de uma capela com luzes apagadas e velas espalhadas. Agora, estes postes é que são velas ao alto de lápides invisíveis.

Estas chamas podiam ser pares de flamas. Podiam ser pares de olhos. O centro deste espiral, invariavelmente, sou eu. Palco de uma expectativa taciturna, agonizante, toda ouvidos aos toc-tocs de meus passos e aos suspiros que se inflam a cada respiro, como se o ruidoso mar soasse e interrompesse, soasse e interrompesse, variando silêncio espacial com gélidos assopros.

As garotas em seus trajes de praia se mexem quando passo ao lado; não é por isso que estou aqui. Um jovem se atribula quando me aproximo pela tangente; deve pensar que sou um desses à paisana. Um gato preto cruza meu caminho; ele deseja-me sorte e se mete numa briga de machos dali a pouco. É a hora em que animais falam mais alto.

O molho de chaves que puxo do bolso tilinta em soprano, como se um jogo de panelas fosse atirado com força a pratos de cristal. Do outro lado do quarteirão foi possível ouvir. Mas, enfim, chego ao prédio de destino.

Há um homem que chegou na minha frente. O porteiro mirrado pergunta a que veio; ouve e informa-lhe qual é o andar referente. Comigo, não questiona, e apenas libera a portinhola. Ele sabe que não estou ali por diversão; nem a trabalho; nem a outros assuntos. Enfim, ele me entrega a correspondência.

[...]

Subo as escadas, já sem a ânsia que sentia quando recém morador. No último corredor, um velho abandona o apartamento da direita com a mão nos botões de sua calça. Minha vizinha surge pouco depois com seu baby-doll brilhante e vermelho e me pergunta como passei o dia.

Após trancar as três travas da porta, finalmente estou em casa. Ativo somente o interruptor das luzes rubras e fracas, sequer de meia-luz, e caminho pelo apartamento sem lembrar das coisas invisíveis largadas pelo chão. Tento não apreciar o aroma de limpeza que destoa do bairro para não lembrar de que não consegui convencer minha companhia da existência de um oásis de conforto que tenho em meu poder. Puxo a cadeira e me sento à mesa que fica em frente à maior janela do cubo. Através dela vejo a Grande Chama, a maior da noite. O edifício que está após o cruzamento se ergue imponente de dentro do vale, e oprime as ladeiras de bicicleta que delimitam seu território. Sua estrutura comporta na base alguns faroletes que emitem ao céu raios de âmbar que iluminam indiretamente o prédio por toda sua “bealtitude”. Trocadilho inevitável. — Fica ainda melhor, pois a fraca e envelhecida luz de chama não compete esta noite com a prata que a lua dispersa pela superfície das estruturas. Hoje o satélite não surgiu, e o firmamento pôe-se negro a contrastar até com o fraco fogo que treme aos olhos do observador noturno. A visão, ainda que sombria, não pode ser mais bela: o velho centro, com toda a escuridão escondendo a sujeira, mas com abajures elétricos que realçam apenas os contornos exóticos da paisagem de concreto artístico.

Pego o papel e anoto: “É na zona morta que levanto-me das trevas.”

Daqui a pouco a minha vizinha, cansada dos ventres e com insônia, baterá à porta e pedirá para fazer-me companhia até o amanhecer. Mas, até lá, ficarei a respirar este silêncio e a admirar tais contrastes.





A lava lava. Ela vem de um buraco.

7 de setembro de 2005

Vai pela sombra.

A bondade dos que querem nosso enclausurado bem nos diz antes do caminho trilhado: “Vai pela sombra.” — No sentido objetivo da radiação solar.

Quando penso que a luz do astro-rei cega a alma daqueles que para ele olham, imagino que a sombra é mais que proteção: é o caminho alternativo, é a opção, é o livre arbítrio para aqueles que querem andar sem serem notados — pois a vantagem do louco é não precisar dar satisfação. Portanto, quando me perguntam para que lado devem ir, banco o idiota a indicar nem o norte nem o sul, mas o interior, o outro lado, aquele que se esconde atrás da razão que ilumina e preconceitua o que não atinge, ou seja, as tais sombras. Mas sem depender dos objetos, pois as sombras vivem tanto do sol quanto o mal do bem.

Caí num labirinto; já não sei o que indicar.

A lava lava com um brilho a-sombrador.

Nativa inativa.

Não um pulo na esquina. Nem uma visita à minha própria avó. — Lá naquela província ainda falam a língua que eu aprendi ser minha.

Mas esta minha (i)nativa está lá fora. Eu não sei pronunciá-la com fluência. Mas tenho viajado a la astronauta e falado dialetos familiarmente estranhos, ou estranhamento familiares.

Ainda sou estranho nesses novos planetas, mas sinto-me e casa. Cada música, uma cantiga de roda com a nostalgia da época que nunca vivi.

Posso ir e voltar num só fôlego só pelo espaço — esse vácuo que existe entre lá e o aí.

Acompanha-me?

Apaixonar-se por mim mesmo a homeopatia.

A lava lava. Ventos sulinos, levem-me até lá.

Velho lobo solitário do mar

Tempo frio e chuviscoso.

Eu não podia esperar melhor motivo para fechar-me solitário naquela Ubatuba. Trailer, cerveja escura, sopa e muita boa música. Eis minha semana fria na praia que vazia se manteve, para meu bel-prazer.

“Vou tomar umas latinhas e tomar coragem para encontrar o nada na praia de faróis apagados. Acho que estou resfriado, mas tudo bem.”

“Queria que ela estivesse aqui e passasse um dia frio comigo.”

Comecei a ler um livro estranho, mas 6 páginas foram tudo que consegui. Não podia me concentrar. O silencia me distraía, me traía, me atraía. Era sinal de que versos vinham em vagões fazendo chac-chac-chac-chac no horizonte alaranjado. Estava frio, mesmo assim.

“E se esse trailer for eu, e eu esteja criando pretextos para conhecer nova gente? Caminham algumas sombras por ali, apesar desse ermo. 'Esmo ermo.'”

“O corpo que busco foge conforme a idade. A barriga que pesa cada vez que corre atrás dela é culpa de sua cadeira do escritório, seu filho de putas!”

A lava lava. A cadeira suja.

A Dança dos Elementos

Ígneo. Relativo ao fogo; ardente; apaixonado.

Sim. Também, “apaixonado”.

Terra. Alicerce do planeta. E quem o sustenta? O que fá-lo não se derramar sobre a massa de sangue e luz que é digerida no cerne de nossos ventres?

Meu amado âmago — o berço do eu meu — tinha uma fonte. Que da outra margem do rio sorria calma e paciente. Quando a fonte foi tirada, a estrutura trepidou trambolhosamente. A balança pendeu como com tímpanos disfuncionados. Eram as lavas explodindo de dentro. Era o centro receoso de viver apenas de memória e ilusão.

Claro e escuro? Bem e mal? Branco e preto? (ou vermelho e branco? Ou vermelho e negro?) —Aqui não se completam. São algozes de algozes. O asco do carrasco. Uma serpente que se mutila pelo rabo. Eis eu.

Lava é fogo. Fogo é ígneo. E, sim, ígneo também é “muito apaixonado”. Pode o calor derreter a terra e fazer dela nova moldura, nova estátua imóvel?

Não se houver vento. Este assassino. Este apaziguador.

Régia. Seu meu apelido carinhosamente valorizante. Ela não sabia, mas desfilava. Ou seja, desfilava sem saber que era um desfile. Ou seja, ela caminhava. Para um público de muitos olhos.

Talvez ela notara. Mas silêncio não se enxerga. Olhar no horizonte, para não cruzar com um dos da platéia — que rima com alcatéia — fê-la não reparar que o estrépito silêncio da mente cobria e encobria o sereno explodir de sangue nas veias. Ah!, este sangue corrompido, sem o oxigênio da atitude, sem o titubear dos passos direcionados! Que venosa que é esta flama ígnea que me aquece e que, por encontrar ventos distantes de meu continente natal, também me sepulta. Estes ares de bondade e de vergonha vêm de longe, e correm vinte anos cada vez que o hoje ameaça o ontem. Pois este ainda teme a vitória daquele, pois está cada vez mais próxima, porém cada vez mais quase.

Régia. Que nome cabido: palácio. Eis o significado. E quem será o seu rei? Não eu serei.

Não? Eu, se... rei?

Não! Eu serei.

Não. Eu ser.

Ei!

Pois aqui, no meu reino diplomático, social, bem-educado, há nas fronteiras uma montanha construída durante quinze anos (parada há 5). Foram ventos ultraviolentos de bondade cristã que tufanizaram a poeira e amontoaram-na nos cantos, para que nem meu reininho fosse invadido, nem porém transpassado. São picos de cinzas. São cumes sem cor, vestígios de passados que nunca existiram, mas propagados foram.

Familiares deram-me uma bússola infalível, mecânica, que sempre ao norte aponta. Daí deduzi que os ventos que me afligem são do norte.

Há vezes que o vulcão adormecido no coração deste reino explode e lança partículas de homem acima do topo do Monte Pueril. Pueril, de “pó”? Só assim um pedaço de inconsciência pôde enxergar além da cordilheira circundante de cinzas. E eu, que cri estar sempre à frente, descobri para surpresa, iluminação e desespero que invariavelmente estava atrás da poeira (ignorância é força).

A Dança da Chuva incrementou em mim a fé nas forças divinas e internas, o deus que em mim adormece. A água da turbulência transformaria a montanha em lama. Mas, cuidado!, pois pisá-la movediça é perigo de imobilidade. Estar acima, como águia, seria somente um trabalho para os ventos do Sul, que são de baixo, “baixos”, opostos aos do norte. Graças às asas crescidas da inconformidade, faria transpor as barreiras — fossem raízes morais, fossem mortalhas de grife.

Régia desfilava, para todos. Régia sumia no horizonte, para mim. E as quatro forças se levantavam dilacerantes, sem mal ela saber. Claro, pois quem acreditaria num coração que se diz maior que todos os pares de olhos e maior que todos os corações? Pois o que de menos há são reinados sem muros ou cemitérios. Minha angústia era por ser excluído e, assim, poder — desculpem-me a redundância que vem agora — brincar com terrenos, chuvas, ventos, lavas, e razões, emoções, pensamentos, paixões.

Estados em guerra, territórios em conquista. A dança dos elementos me recarrega.


A lava lava como água à cinza.