20 de maio de 2007

Ins, piro.

__O maior desligou a TV, cansado do canal metelógico e de suas previsões previsíveis dos abalos que assolariam bem de cócegas os campos daquela região.
__Mas foi como um vendaval.
__A Terra se abriu, as águas evaporaram. E sem explicação, uma folha verde balançou. Sensação fresca do novo, fenômenos que acontecem como o El Niño, mas El Niño da mitologia grega.
__O caçula disparou pela porta da cabana; o mais velho o conteve, mas a persistência e pressa do frágil amoleceu o forte, que desistiu de acompanhá-lo no passeio ali por fora, e se encostou ao muro da cerca observando o garoto saltear pela grama.
__Ia em direção a uma garota, estranha por ali, que estava no jardim sozinha e acenara para que o pequeno a acompanhasse numa brincadeira.
__Eram desconhecidos e não.
__Ninguém fora apresentado — o mais velho sabia que era nova por ali — mas começaram instantaneamente a conversar animadamente, rir juntos, cirandar, pega-pegar em torno da única árvore plantada no quintal, num só fôlego, respirando leve e nem dar bolas por pulmão arfando.
__— Você não gosta do vento bater no rosto?
__O garoto concordava.
__O mais velho, de braços cruzados descansando-os das tarefas de casa, observava as crianças, o enquadramento daquela cena tão rara e sublime, elas dando joelhadas na grama aparada e alta, que com suas flores e borboletas balançavam cada vez mais forte, como se a força centrífuga de um redemoinho surgisse daquela serelepe correria.
__A árvore fazendo ginástica, alongando-se cada vez mais dolorosa e intensamente, fazia parecer presságio de chuva. Como o céu era limpo, o maior deu de ombros, relaxou os braços, os deixou escorrer pelo tronco de si até os bolsos da calça camponesa, e divertiu-se com a energia dos novos companheirinhos. Há tempos que seu moleque não via alguém de sua idade, naquele campo cheio de gramas polidas e gentes cortadas.
__“Gargalhar faz bem pra dentro”, um pensamento sugestionou. Encorajado, deteve-se de chamar, e também se aliviou quando o sol examinou o campo. O maior então voltou-se à cabana para terminar o que tinha que terminar.
__— Não vão se machucar! — disse antes de descompor sua guarda protetora, protecionista, e folgar dos olhos a tarefa que agora seria só ouvidos. O campo era grande e dava pra se saber as distâncias pelo volume das gargalhadas que chegavam através das janelas abertas. — Divirta-se com sua nova amiga!
__Como era deliciosa a risada macia e inocente do moleque apimentado. “É fogo na roupa, como agüenta?” questionava-se com um sorriso de tutor. Pensando no menorzinho, o grandão cozinhava o almoço, e, planejando pela nova amizade, pôs meia porção a mais àquela quantia que antes bastava aos dois inseparáveis irmãos. E fez com mais carinho. “É preciso deixar o moleque brincar, senão o foguinho vem descontar em mim quando trabalho.” — Pôs mais água enquanto de meia distância percebia-se que a brincadeira não parava de alegrar aos dois pivetados. “Como consegue? Fosse comigo, estava com o coração na garganta, já roxo.”
__Pronto, agora era só esperar a panela assoviar.
__Encostou a porta e a janela para que aquele vento não apagasse o fogão, e deitou-se relaxado numa poltroninha onde o mãozão costumava contar histórias pro mãozinho que se sentava no colo. Mas em vez de ligar a TV, o rádio ou abrir o livro que vinha devorando, preferiu curtir aquela combinação gostosa de cheiro de comida aumentando, ventinho refrescando, som de crianças brincando, correndo, corando, rindo, aqueles sons sem vogal nem consoante, terapia auditiva, a grama cocegueando os pés das cercas, a própria cerquinha nheco-nhecando, satisfeito de fazer comida para três e poder chamar a amiguinha do zinho pra brincar mais vezes, quem sabe toda semana, todo dia, assim mandava pra longe aquelas preocupações de velho carrancudo que o acometia aos vinte e poucos anos, ver o pequeno feliz era sua felicidade, sem cidade, só campos, ventos, aquele energia explosiva sendo dissipada sem choro, como era bom ouvir aquilo e se espreguiçar na poltrona onde costumava contar histórias pro maninho menos agitado só suave, solto, sossego farfalho sussuro relaxiacho...
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__, que a porta bateu, a janela duas vezes, o vidro estraçalhado chegou aos calcanhares dos pés do mais velho, que acordou de susto com os ruídos repentinos e violentos, e a panela já chorava escandalosa. Pra parede, pra fechadura, parede, fechadura, parede-fechadura, uma bateção de porta que desesperou o até então zen camponês. Uma bagunça, uma bagunça, papéis se encolhendo no canto da sala, poeirão no chão arenoso, cacos, cuidado com os cacos, mas que zona é essa? Que eram aquelas folhas secas dançando pela cabana? Que eram as folhas verdes fugindo de fora apressadas e sem rumo? Que era aquela cama amarrotada, o travesseiro do mãozinho no chão?
__Mãozinho!
__Cadê meu mãozinho?
__Que vento pesado que me impedia de chegar à porta sem parafusos, à janela impotente, a qualquer buraco, mas o sopro vinha forte de todas as frestas e rombos que naquela cabana podia haver.
__Maninho!
__Mas o vento não deixou o grito sair de casa. Daquela força que brota dos lençóis freáticos de lava e sangue, agarrei-me aos pés do que tinha de peso, aos móveis fortes, e mão a mão, tendão a tendão, cheguei ao rodapé da porta, por dentro, desta forma podendo por muito pouco olho enfiar a cara pra fora e procurar, até que os primeiros ciscos e lágrimas me impedissem, por meu irmão. Nada! E, paralisado, apenas mantendo a tensão dos braços agarrados ao que fosse, vi um redemoinho curto, ágil, que rasgava o campo com sua força, centrífuga e centrípeda, e depenava as folhas bravas que ainda se seguravam com fios de nervos ao caule de seus galhos. Onde estava o moleque? Onde se metera, escondera? Não era possível que aquela massa tasmânica, dançando bêbada a duzentos por hora, pudesse ter pego o meninão. Ele devia ter se escondido. Mas, que raios! E eu não conseguia sair! Ora um punhado de terra dispersa vendava minhas vistas, ora o vento que empurrava com mãos giratórias minha cabeça de volta à cabana. Cansei, sufocado pelo ar, e engolia a seco cada lufada goela abaixo, afogado pela ventania que me descia a cada abrir de boca. Um redemoinho por respiração. E, era pressão baixa, ou havia centelhas dançando em volta da loucura de Eos?
__Os braços amoleceram, e por sorte logo o vento idem.
__E da árvore do quintal, das árvores do campo, que sobraram em galhos feridos? E as flores, do jardim que estava ali, invisível, na alma que se ia nas areias de veos? Pétalas, que gritavam em busca de seus cálices vazios de mel, vazios de asas, soltos às gramíneas e sem chance de dar cabo a sua espécie?
__Mais distante, quase do tamanho duma mosquinha, numa dessas relvas desoladas, jazia o corpo.
__Maninho!
__De bruços, de braços nus, com seu frágil tronco tombado sem roupas.
__Enferrujado, corri ao zinho, com o fôlego emprestado da mãe vontade, e, com tapas de carinho a amor, bati no rosto até que emergissem nas bochechas a resposta de sua vidinha.
__Ele acordou, chorou pelos tapas, mas conforme o abracei forte e dividoso, entendeu, soluçou, e lembrou que estava ali sem saber há quando. Perguntava, mas o inho só arregalava os olhos quanto mais seus olhos varriam o que já havia se varrido no campo. Inútil tentar mais testemunhos, portanto voltamos para a cabana, ainda, por graça, firme.
__Lá, depois de um chá e banho de canequinha, meu maninho vomitou. O começo no meio o meio no fim o fim no começo o começo de novo e de novo tudo ao contrário sem que conseguisse formar a coisa na causa e seqüência em conseqüência. Sugeri dormirmos.
__Nada falou naquela noite, e de seu ego só saiu um grunhido manhoso, medroso, pedindo abraço enquanto dormíamos na mesma cama; pedindo proteção, quase sem conseguir nanar, com medo que a mão invisível o carregasse pro meio daquela zonona. Pedindo explicações silenciosas. Mas a energia aplicada ante tragédia uma hora veio bater à porta cobrar juros, e suas janelinhas fecharam enfim.
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__[...]
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__Nada como um passou. Entre os rerrelatos que depois vieram espontâneos, encontrei da boca do maninho algumas construções em processo, como “achei que estava voando”, “veio de repente”, “não tive medo” e “até que caí no chão e você me bateu”.
__— “Eu” estava voando”? Ou “você” estava voando?
__— E ela também.
__Então compreendi.
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__[...]
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__O irmão mais velho simplificava os comos às perguntadores da região. Como pudera ser tão rápido? Como ele foi tão longe? Conhecia? Como deixou ele brincar com uma estranha? Se bem que nunca se desconfiaria. E por que ela sumiu quando ele estava entregue ao desastre? Ah, a liberdade... Mas, gente, que abismo sem placas!
__Não era por mal, só que não queria falar, nem forçar o menino falar. Quando interrompido por alguém da família, o menorzinho pegava sua bola e a abraçava, olhando reto ao fundo da grama, e a pessoa sentia que incomodava, até mesmo aquelas meninas compreensivistas. E então voltavam seus olhares clamantes, ao maior, exigindo como-não-? satisfações.
__Nunca mais a voz de gargalhada. Só o medrosinho, que só se apresentava agarrado a uma das pernas do medrosão.
__Nem nunca a garotinha das vendas, dos vendavais. Das chuvas, dos terremotos e dos vulcões, as redes transmissoras avisavam a cabana cada vez mais antecipadas. Mas os ventos, da entrada à saída, a pressão, a altura, essas coisas que a física entende mais que a química, ninguém nunca preveu. E, no entanto, o mais velho se assustou quando o irmãozinhozão disse, também sem previsão, que toparia voar daquele jeito inseguro só pra sair um pouco daquela previsível monotomia da metologia da cidade.
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