26 de novembro de 2007

Molequis-se

Faz duas horas. Com seu sorriso moleca de risada ririri visto por último dei minha mochila à portaria, mochila pesada, cheia do que seria usado caso não estivesse dando as costas, e com meus tradicionais passos nerds grandes largos desço a rua de tantos boêmios, artistas, perdidos burgueses. A esquina já nem tanto burguesa tem um bêbado sentado e sua padoca mostra o Fantástico, vende Kaiser e entretém os que ainda não fazem companhia ao velho sujo. Três e cinquenta a Gold. Ninguém dessa avenida tem esse poder.
__São cinco minutos passados. Duas negras olham sem vergonha e com vergonha desvio-as para o letreiro do que vem passando. É que no ponto da Teodoro é assim: estranham quando um mochileiro, branquinho tal, sobe e senta ao lado nos paus-a-pique de metal; antes fosse pela qualidade do transporte, mas não, é falso nivelamento. Porque a três quadras dali, lençóis perfumados, assoalho e Europa Filmes e seu sorriso moleca pretoembranqueiam meus cento e oitenta graus frontais dos cento e oitenta graus fundos, lá mesmo, no crânio, no cérebro, nas terminações nervosas, na memória, no doce. Pretas e branca. Não é mancada. A verdade é cocha.
__Pronto, a paciência ereta boceja com as mesmas figuras. Na mochila descansa uma tradução de Benedita de Ulisses socada por touca, camiseta-reserva, blusa, meias, desodorante; com certo equilibrismo, mãos ágeis por dentro do ninho de cobra vem a metamorfose de novecentas páginas — desafio de dez anos de dia, dez de volta ao qual caí de bruços — e então o que eram cinco vira um, o que eram dez tornam-se dois, às vezes três numa olhadela confirmativa ao letreiro que cresce na descida, e, quando vem a vã quebra-galho integrativa, já são quinze e no entanto trinta. Domingo é o dia do tédio e somente a arte salva.
__Foi dia de Fuvest, é verdade. O adolescente à frente tenta convencer o cobrador que a isso, à prova, se deve a falta de vinte centavos para completar a passagem. Eu corto a conversa em duas e passo com meu cartão; o moleque convence e sobe por trás. Sua namorada o saúda pela malandragem; ambos tocam suas mãos e já nem lembram o que foi dito; ela dorme no ombro e ele na vista ao lado. O Pinheiros cheiroso, pesado e abaixo da ponte. Mãos. A minha dói. É falta de exercício: levantar Dublin à altura dos olhos sem o apoio dum colo, travesseiro ou de lava-a-outra, não são bem o tipo de aquecimento anti lesão por esforço repetitivo.
__Dois minutos, ou uma página, e no entanto um quarto d'ora, sinalizo o próximo e desço no camelô de doces da Vital. Mais um que são cinco. E logo vem o João. Que sorte, vazio. Subo, passo e sento, à companhia da mente atordoada de Joyce. É bacana dizer que lê Joyce. Aliás, é bacana dizer que lê qualquer sobrenome, que, separado do nome que o complementa, impressiona, aproxima como a Internet: sem aproximar; é a intimidade pintada na preguiça. Quer saber. Eu leio James, James Joyce, porque não sou nem íntimo, nem quero parecê-lo, ou dar a entender que o entendo, que para bom entendedor meio nome basta, longe. Ás vezes — muitos os às — saio pela tangente de uma descrição; agora mesmo, voltei ao sorriso moleca e pintas quase sumidas na cremosidade da pele que me envolvia no último abraço a lençóis perfumados. Valeria a pena ver a peça ao lado? Valeria a pena só por umas inspiras expiras a mais? Não, tem o filho, o urgência, a surgência, targência. A pitada, a novidade, mas hoje não, hoje tem amanhã trabalho.
__Onde estamos mesmo? Que rua de Dublin?
__Ah, a Raposo. Seus corações neons, suas cidades turísticas, seus próximos retornos, suas pernoites, seus segredos. Os meus também: sobre meu ombro lê os pensamentos de caderno preto, o sete-chaves. Ela é doce, tem o quê doce, tem a vontade doce e doce também é o gesto que lhe preparo, o ensaio. Noite agradável. Estava calor e as costas refletiam a meia-luz da janela. Hoje está frio com as costas a grudar na camiseta. Gosto de mão pequena.
__Ririri.
__Penso que vou escrever essa rodovia curvada de pensamentos, tal qual Djei Djei James Choice — quiçá... — e até delineio alguma frases. Mas, preguiça. O livro pesado, a mão cansada, o caderno socado na mala, deixo a palavra pra na hora e ponto, volto a ler a odisséia alheia. A morena ao lado tem olhos de víbora, e só deus sabe quais as contrações que me caosariam. Mas bundinha amassada. Cinco minutos em vinte, desço de novo. Ela olho o meu volume. Novecentas páginas é como bíblia. Que religião ele é? Ih, é dos letrados, fora, véi.
__O Osasco já passou?
__Está tua eu de novo. Alguns vetibulandos; maioria comerciário. Shoppings, galerias, lojas, roupas coloridas e um sono nos olhos a esperar o último quadro do sonífero Fantástico. Os bíceps no contrapeso, senão a torá cai. Pintasse de branco-me e seria convincente. De parágrafo em parágrafo a sentinela. Mais uns cinco minutos, esses cinco totais mesmo, porque os carros passando buzinam e me chamam. Este é bem grande, tanto quase perco o meu. Entrei, foi de quase. Se não fosse a fila, a atenção, a frase quebrada. Chega de Ulisses: é tortuosa a subida, treme os dedos, os olhos, as letras pulam sem nexo, a vista cansa, a retina descola. Chega de Dedalus.
__E amanhã? E a branquinha? E a vontadinha, a doçura, o banho demorado? A risada moleca, a moleca de dentro, o saltiteio, a sem papas chegada e delica? A romântica do trio quase menage da atenção desviada, a concentração artísitca e de renda burguesa-porém, o assoalho, o lençol, que companhia gostosa, singela, sem mais e muito menos menos.
__E, claro, a morena? Eterna promessa? Ensaio sem estréia? História guardada, casamento omitido, atracamento, proibição, maçã, mensagens, masturbação, provocação, e ensaios, e passadão verbal, e bate-texto, sem marcação, sem consequência, fora dos planos, o que fazer se tesão não se guarda em caixa? O pensar podia, o pisar inserá. O até de ombros, a maré sem planos, volúvel. O clima por milêncios foi o mesmo e os humanos se desenvolveram na calmaria geológica. Basta meio grau, uma geleira, e já é motivo de fúria. Veio do nada. O degela deságua desvapora e vira ar, cobre o céu, chove, mas... não molha. Depois vem o ciúme, a galinhagem explícita, os olhos baixos e não é vergonha, é lamento. Podia, não podia? Não podia. Poder, podia, mas é a circunstância. Não, a circunstância não: o fato. É o é. E ia, mas não foi. E nem pode será.
__Dois lados: pra cima e pra baixo. Eu vejo o chão. A quatro patas. Resfolego. Lua cheia e ela quer casar. Eu dou o passo sob o luar. O astro e o astro. É pau, é prata, é a luz no caminho. E eu aqui sozinho.
__Já estou em casa. Na garagem meu dedo avança uma mensagem de celular. Essa tecnologia do depois. Gostei das horas com você.
__Quem diria, ela vendo, ela revelando, ela trazendo o ciúme à tona, eu surpreendido mas com olhos à outra. Quem explica. A cozinha, quem explica? A dança, a serenata, o nariz, o colo. Quem? O banho e ontem é outro colo, outro nariz. Outro que agora é o o. Quem? Busco o ponto final e vêm três: um atrás do outro. Como? Quando? Quais palavras? Deixei sentir, e só. Fútil você. No meu direito, sim. Palavras vazias aquelas. Não eram, eram cheias. A maré vaza, vai parar em outra terra. Mais Europa. Tem porquê? Facinho você. Tem porquê? Facinho. Aproveitador. Ovelha-lobo-ovelha. Duas caras. Duas, três, quatro. A que convir à que vir. Vai, vai pra fora. Sem convite de casamento. Daria, daria, daria certo se fosse pensado. Não, não tem como sair, abandonar, eu vou casar e você estará em outro mar. E fisicamente, meu bem! Meu bem. Meu... Bem, chega. Não ponho a perder. A cerca, eu tiro um pé do chão mas a queda me assusta. E é tão baixa... Uma boa companhia, quem resiste? Suave, doce, quem? Desculpe, mas eu não Desculpe. Eu até diria, mas eu reduzo a cada revisão. É esse pensar demais. É sentir menos. Quase que não foi por pensar. E nem estava pensando. É, era cansaço e eu queria desculpa. Quase que me meto em encrenca inventando. Não, eu pensei só na hora de desculpa. Eu não queria baixar, era minha chance e elas estavam volúpias, quase expulsaram-nos do local. Por isso, o assoalho, o chuveiro a gás, a cama de casal raramente de casal agora com três. Foi, foi assim. Os dois, quatro, oito lábios e já não são tão seus, que foram pro baixo do tapete. Ou pro jardim do vizinho, para eu verdear quando amanhecer. Quando acabou, e nada, lá estava eu, sem dormir, pensando nos porquês, pensando como sempre faço: sem fazer. Até que me vi a dois e foi. Existe pau romântico? Creio. Olha como a canção me sarcasta: "Bohemia sem calcinha" com final de "Foi barato". Não, essa final não, porra. Não é pra combinar assim. Foi bom. Gostei. Pode repetir? Juro que não causo problema. Mas não se assuste. Keep talking. Vou escrever. E agora. Ligo o computador, confiro o celular, mas, por ser sem volta — olho a mensagem, molecou o sorriso e recusou a resposta; ou não, nega-se a tal cortesia, pensa se deve, não deve e dorme; ou a tecnologia esquecida numa bolsa. E escrevo. Olha, já era muito você quando lembrei que não pode. É por isso que lençol perfumado. Quis e quis, quero também. Esqueci de começar:
__Faz quatro horas. Com seu sorriso moleca de risada ririri...
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