5 de dezembro de 2005

Linha de produção.

O velho barbudo tem os cabelos mal penteados. Seu jaleco prende seus braços cruzados por dentro da vestimenta, numa posição eterna de um carateca prestes a cumprimentar seu adversário. Ele não parece ter desviado os olhos do chão desde que entrei na fila.

Quer dizer, não tenho certeza sobre o tipo de jaleco. Deve estar na moda jaleco com fivelas de cintos nas costas.

E, pra falar a verdade, nem mesmo eu pareço poder me mexer. Exceto o pescoço, que movimenta com a cabeça, quando olho para os lados.

Quando optei por entrar nessa fila, o discurso utópico da placa me fez acreditar que era o caminho mais rápido para a felicidade sem culpa ou moralismo. No início, estranhei o fato desta ser menor que a fila do lado; depois, passei a acreditar que o maior volume de pessoas na outra opção era culpa da característica humana do espiral do silêncio — dom que poucos nasceram sem. De qualquer forma, acreditei que, fila menor, discurso melhor, o negócio estava garantido.

Mas descobri serem os filósofos uns publicitários de falsos produtos. Cheguei a ser discípulo de uma marca, a marca “sem marca”, e com toda a sacada imagética e textual me fizeram crer na felicidade rápida e indolor da opção escolhida.

— Mas é tarde para voltar, diz a voz do amigo que vem logo atrás de mim.

E realmente. São sistemas que não se interagem. Dá pau. Dá tiro. É preciso começar do zero, morrer.

Descobri sem aviso prévio de que a ilusão da fila com menos gente e da felicidade livre de amarras simplesmente... não anda.

A fila ao lado perde seu fim onde os olhos não alcançam. É gente feliz, comemorando a andança, o caminhar, fazendo suas seitas rotineiras. E não pára de andar, não pára. Na verdade é uma maratona sem muitas linhas tortuosas, cujo início ninguém sabe, e cujo fim só é sabido como um portal negro por onde quem entra não é mais ouvido falar.

Se tivessem nomes, aquela seria a fila da certeza.

A minha, a da dúvida.

Se, assim como as pessoas, todos os pontos ortográficos pudessem decidir, as exclamações, as exclamações triplas, as reticências, as vírgulas, as faltas de, os pontos finais, as faltas de, e toda a diversidade gramatical, estariam na fila que anda.

Exceto a interrogação, pelo motivo que já é esperado.

Disse meu amigo com um tom indefinido:

— Olha lá o cambista, de hábito. Olha o outro, com um carro debaixo do braço. Estão vendendo lugar na outra fila. Mas aquele vende mais barato, o das armas.

Os meus objetos de pertence, até então meus, somente até antes da escolha, foram deixados na inspeção de entrada. Para retirá-los, custam a minha consciência.

O que eles não puderam retirar são as idéias lidas, entendidas e reformuladas. Não posso garantir que muitas originais não interfiram e se misturem na memória. Mas, ah!, se o poder destes conceitos fizessem andar a fila!

Há muito tempo que estou no mesmo local. O que me distrai é meu radinho. Ele toca algumas canções de amor, amor de todos os tipos. Na verdade, não é declaradamente de amor o tema de cada música, porém é aquilo que eu suponho ser o amor. Lá, do outro lado, talvez tenham a mesma idéia sobre isso, mas desse temos o cansativo, doloroso e até desolador fado de ter que dar sentido à palavra Amor. Quem se empenha, muitas vezes consegue. Mas ninguém daqui desta margem sabe ao certo o que passa por dentro de cada um para saber dizer se foi mesmo o amor que levou um companheiro de fila para a parte boa da vida. Ou seja, até hoje, por trás da indumentária colorida não se sabe ao certo se era a parte boa.

O povão do outro lado acredita que sabe o fim daqueles aos quais eu provavelmente engordarei a relação. E falam com pesares ou sarcasmo apontando suas espadas aos nossos pescoços; pais de família, quando notam suas filhas direcionarem uma lasca de brilho a nós, já sacam seus revólveres; nós, querendo trazer mais cor a este lado, pensamos em trazer a filha; porém, este é o time da interrogação. Até da paixão se duvida, mesmo vivida intensamente. De qualquer forma, não tenho a espada para lutar de igual pra igual; ele já tomou minhas bainhas no ato de pronunciar os sarcasmos referentes à minha condição.

O fim, quando não se pula o muro, é certo: as meninas superprotegidas irão seguir o que já destinavam. Lá é a região da preguiça e inércia. Já, deste lado, ainda é questão.

A desilusão por tantas noites nos assola, que a tristeza do não-chegar-logo não me permite empregar Amor ao nome desta fila.

Pensa vem, pensa vai, e uma garra de três lâminas veio sorrateiramente da escuridão do firmamento e puxou pela cabeça o velho que estava à minha frente. Começo a duvidar de minha sanidade quando ouço vozes. Elas dizem: Este aqui já não vai bem; Mal fala direito; É sujeira; É revolta; É visionário; Não há lugar pra mais messias; Sim, jogue no lixo.

Tive o triste prazer de lê-lo, o velho, muito tempo depois, numa biblioteca. Porém, era um sonho. Na vida real, o minimalismo do conceito da esteira de fábrica continuava funcionando.

De todas as frases já lidas até hoje, nada resume mais o ser humano, em sua racionalidade cega, que a do Orwell de 1984: “A ignorância é força”.



A lava lava. Preciso de lava.

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