11 de setembro de 2005

Buraco do Diabo.

O último ônibus cruza o cemitério à luz de um Finados. Zumbis fecham barracas, trancam janelas, apagam suas tumbas, e então resta à cidade apenas as velas acesas, cujo papel é cumprido pelos postes cor laranja que sinalizam por onde sonâmbulos devem caminhar.

Uma parte dorme para reservar-se ao árduo amanhã. Outra parte curte como bem ditada a noite foi. Outros vagueiam com suas yin-yangalmas à procura de saídas. Nenhum deles no campo de vista. A mim, somente marginários do centro.

Anhangabaú. “Buraco do Diabo”.

Silvícolas visionários.

Não há um carro em minha garagem. Por tal, não permaneci onde estivera há pouco e tive que retirar-me da companhia agradável. — É preciso muita energia a prostrar vigor por toda a madrugada. Nenhum problema, até então. São os bares que não agüentam. Para tanto, deixei a mesa em tempo suficiente para não encontrar apenas apagados Reservados e Garagens em disparada pelas ruas.

Tempo suficiente também para desapontar minha companhia, pois, sem poder deixá-la em casa, não soube ser convincente o bastante para levá-la à minha. Tudo bem. Ela não foi a primeira a recusar. O local não costuma atrair muitos além dos ratos. Faz aos outros o oposto ao que a mim.

“Já vai sair o último”, digo-lhe, e me despeço. Mais cinco minutos, e seria obrigado a passar a noite a pé.

“Por que é então que eu não lhe dei um beijo de dez?”

[...]

O último ônibus cruza o cemitério à luz de um Finados. Sou eu que saio por último antes das luzes do transporte se apagarem. Ele parte e some à esquerda. Agora, somos apenas eu, as chamas dessas velas altas e minhas dezenas de sombras. Que não são necessariamente projeções de meu corpo no chão.

Há algum tempo, pelo mesmo motivo logístico, fui obrigado a passar a noite em claro no escuro. Além de mim, bêbados suportando muros, perdidos de olhos vermelhos com narizes vacilantes, mendigos dormindo por sobre seus próprios ácaros, prostitutas fazendo companhias às baratas, e o uivo que se ouve pelo vento que risca o vão dentre os prédios que nos cercam. Acordei vivo, sim. Foi então que tomei a decisão de passar todos os luares no Buraco do Diabo.

Há rua. Há postes. Há janelas. Tudo ainda nítido, ou quase. Foque o horizonte, de tal forma que as luzes se espalhem por sua retina, e então verá nada mais que negro e faíscas cor de âmbar que tremem conforme o movimento aquoso de seus olhos. É a mesma impressão que tive quando fiz o mesmo dentro de uma capela com luzes apagadas e velas espalhadas. Agora, estes postes é que são velas ao alto de lápides invisíveis.

Estas chamas podiam ser pares de flamas. Podiam ser pares de olhos. O centro deste espiral, invariavelmente, sou eu. Palco de uma expectativa taciturna, agonizante, toda ouvidos aos toc-tocs de meus passos e aos suspiros que se inflam a cada respiro, como se o ruidoso mar soasse e interrompesse, soasse e interrompesse, variando silêncio espacial com gélidos assopros.

As garotas em seus trajes de praia se mexem quando passo ao lado; não é por isso que estou aqui. Um jovem se atribula quando me aproximo pela tangente; deve pensar que sou um desses à paisana. Um gato preto cruza meu caminho; ele deseja-me sorte e se mete numa briga de machos dali a pouco. É a hora em que animais falam mais alto.

O molho de chaves que puxo do bolso tilinta em soprano, como se um jogo de panelas fosse atirado com força a pratos de cristal. Do outro lado do quarteirão foi possível ouvir. Mas, enfim, chego ao prédio de destino.

Há um homem que chegou na minha frente. O porteiro mirrado pergunta a que veio; ouve e informa-lhe qual é o andar referente. Comigo, não questiona, e apenas libera a portinhola. Ele sabe que não estou ali por diversão; nem a trabalho; nem a outros assuntos. Enfim, ele me entrega a correspondência.

[...]

Subo as escadas, já sem a ânsia que sentia quando recém morador. No último corredor, um velho abandona o apartamento da direita com a mão nos botões de sua calça. Minha vizinha surge pouco depois com seu baby-doll brilhante e vermelho e me pergunta como passei o dia.

Após trancar as três travas da porta, finalmente estou em casa. Ativo somente o interruptor das luzes rubras e fracas, sequer de meia-luz, e caminho pelo apartamento sem lembrar das coisas invisíveis largadas pelo chão. Tento não apreciar o aroma de limpeza que destoa do bairro para não lembrar de que não consegui convencer minha companhia da existência de um oásis de conforto que tenho em meu poder. Puxo a cadeira e me sento à mesa que fica em frente à maior janela do cubo. Através dela vejo a Grande Chama, a maior da noite. O edifício que está após o cruzamento se ergue imponente de dentro do vale, e oprime as ladeiras de bicicleta que delimitam seu território. Sua estrutura comporta na base alguns faroletes que emitem ao céu raios de âmbar que iluminam indiretamente o prédio por toda sua “bealtitude”. Trocadilho inevitável. — Fica ainda melhor, pois a fraca e envelhecida luz de chama não compete esta noite com a prata que a lua dispersa pela superfície das estruturas. Hoje o satélite não surgiu, e o firmamento pôe-se negro a contrastar até com o fraco fogo que treme aos olhos do observador noturno. A visão, ainda que sombria, não pode ser mais bela: o velho centro, com toda a escuridão escondendo a sujeira, mas com abajures elétricos que realçam apenas os contornos exóticos da paisagem de concreto artístico.

Pego o papel e anoto: “É na zona morta que levanto-me das trevas.”

Daqui a pouco a minha vizinha, cansada dos ventres e com insônia, baterá à porta e pedirá para fazer-me companhia até o amanhecer. Mas, até lá, ficarei a respirar este silêncio e a admirar tais contrastes.





A lava lava. Ela vem de um buraco.

Um comentário:

Anônimo disse...

intiresno muito, obrigado