31 de julho de 2006

A voz de vós.

__Certas estrelas se gliterizam. Querem os holofotes. Certos atores cerejeiam o bolo. Um deles, ensaiando uma peça cujo nome ninguém no ramo conhecia, ou sequer ouvira falar, explodiu após um sonho de morte: um Eros "eróico" em homem. Mas os dedos apontavam-no como outro caído no canto de sereia! Angustiado, esticou o arco, apontou sua flecha ao seu coração pronto para extingüir do mundo a esperança e...
__Acordou de pulso palpitante. Não conseguindo voltar aos travesseiros, abraçou expremendo-os, como se deles fosse escorrer o clichê doce néctar de uma diva. Sonhou que a sereia era seu reflexo. Quis ouvir de perto, aproximou seu rosto e...
__Despertou mais uma vez. Estava em pose de flexões de Narciso. Seu lago: a baba na fronha. Tirou-a e abraçou de todas as formas as almofadas. Entre umas almas, outras fadas, sonho com coisas devidas e...
__Acordou novamente, dessa vez com dor nos testículos. Latejava, e seu pau estava de cabeça erguida. Rindo.
__— Ei, tu aí de cima? Queres ver como meu martírio te corrompe?
__— Egoísta!
__— Eu te desafio!
__— Vais aprender a conviver com todos! Abandona-nos, que nós dois te podaremos até a lição aprendida!
__— Dois? Que dois? Aqui não sobrou ninguém, há, há! O teu medo me prende. Minha prisão te molda. E nem o terceiro, esse calado aí entre a gente, consegue algo mais que seus surdos tambores, há, há!
__Escárnio da carne.
__Acordou de mais um. Agora suava frio o ator, e teve a sensação da solidão observada. Intuiu que havia ali, em torno, alguns olhos. Apertou o interruptor para acender a luz, mas nada. Escuro ainda. Clic, clic, clic, e nada. Escuro.
__— Não adianta, principalzinho.
__— Quem está aí?
__— Somos nós, os coadjuvantes. — Eram muitas as vozes em brado; não em uníssono, mas num coro retumbante. Eram oito. Não, oitenta! Não, eram...!
__— Isso, sonha. Sonha mais. Estás dormindo? Acordado? Não importa, lembrarás. Lembrarás, porque seu monologar voltará em dardo certeiro. Acreditas em teu monólogo? Acreditas que pode tomar para ti toda (a) atenção? E cobrir-nos com tua fumaça de gelo seco? De gelo, sim, por frieza, e seco, por rispidez! Olha para nós! Ah, está escuro, não? Não nos enxergas! Não nos enxergas nem quando não há interruptor! Seja dia, seja noite! Sabes o que são os coadjuvantes aos protagonistas? Sua causa! Sua lava! Sua cicatriz! Mas não, tu não encaras. Tu te escondes de nós dentro desta cama de concha!... Mas haverás de te abrir. Porque monólogos nunca duram mais de uma noite de apresentação. Tanto em arte, quanto na resistência de um ser. Tu podes ser a voz principal, porém lembra-te do cerne, do teu alicerce. Nós! Nós, que, quando hás de estar sob holofotes, somos a sombra. Agora, ou aceitas, ou assumes: melhor um silêncio a dois que um discurso monólogo. Ouve nossa voz. Nós somos teus eus.
__— Me largue, milagre! Me largue, milagre! — Era seu novo acordar.
__Reinava o silêncio. E, com todos de cabeça baixa, pensou naquela história, no que haveria de ser, nessas palavras que gritara como louco no momento do sono rasgado. E sentiu desejo de dizer. Ligou. Ligou e disse trocando o da distância unilateral pelo aqui de um dueto.
__— Fe... feliz... por você estar aqui.
__— Mas eu não estou aí.
__— Não fisica... fisica... mente.
__— ...
__— Estou... feliz.
__— ...
__— ...
__
__
__
Tu!, me largue... Tu!, me largue... tu!... tu!... tu!...

30 de julho de 2006

Crenças crianças.

__Crianças.
__Crianças.
__E mais crianças.
__
__Crianças que atiram.
__Crianças que roubam.
__Crianças com tendinite.
__
__Meu cérebro com L.E.R., de fechar os olhos.
__
__Crianças fazendo judô atrás dos muros de segurança.
__Crianças vendo Nickelodeon e comendo Danoninho decrescido em 20g.
__Crianças apertando cima, baixo, A, B, sem saber o a-bê-cê da ciranda de dar as mãos.
__A modernidade venceu em pró da inteligência. E das castas. E dos futuros prozacs. E do futuro álcool, necessidade pra cobrir a falta da ciranda.
__
__Minha criança não pode viver longe do comércio. Mas são estas as crianças com quem brinco. Onde está a criança para brincar com a minha? E, no futuro, à procriança?
__Até a nascida já está pra lá do outro lado. Pra lá de Bagdá e de volta ao mesmo ponto. E enquanto a criança cresce, meu sonho ênêvoa. (Se já não énévoa). Até no que eu cria ergue-se traços de mesmice.
__E me enfiam num Processo do não envolvimento. Num tribunal do não compromisso. Admirável Mundo Novo, sem meu cultivo das falhas.
__O fim de 1984 se aproxima como uma Linha de Sombra sem ter eu lançado o barco à Ilha Desconhecida. Com sarcasmo o mais vendido ri do Pequeno Príncipe e do Lobo da Estepe.
__O fim de 1984 se aproxima, e eu com medo de, como Winston, dizer Te Amo. Ao lado errado.
__
__Ou a qualquer lado.
__
__
__
__(Com pavor reli o texto e descobri esta última qualquer frase. Esta última qualquer. Quer dizer, alguém sentiu pavor. Meu rosto, essa parte do maxilar, e de baixo do nariz até o queixo, não se moveu. Mas ouvi um grito. Que veio da garganta, ou talvez de mais fundo. Um grito que chegou, de longe, após chegarem as filhas dos verbos irmãos, estas palavras primas, a venda e a venda, que geraram o diálogo:
__— Qual quer?
__— Qualquer.
__
__
__— Meus olhos, onde estão?

__
__
__)
Criança, criancinha, vamos todos criançar.
Vamos dar a meia volta e à criança não voltar.
__
(E que aí termine.)

Tiros d'água n'alma.

__Chuva.
__Pedestres no ponto. Alagados. Chovendo dentro de mim.
__De repente, carro acelera. Tsunami no pedestre. Leptospirose no pedestre. Eu, puto.
__Farol fecha. Tijolo na calçada. Tijolo na mão. Vingança.
__Tijolo no carro. Vidro. Grito. Briga. Olhos, nós.
__Polícia. Eu preso. Eu vândalo. Motorista bê-ó. Bê-ó n'eu.
__Olhos apontam: tijolo vândalismo físico. Olhos esquecem: água vandalismo moral.
__Zapearam de canal. Pro mais trágico. Eu sem espectador. Sem testemunha da causa.
__Fato: o agora. Construção dele? — Nunca!
__Que vandalismo moral? Qual moral?
__Pixel de Brasil.
__
__
O drama lava. O circo leva.

Da vida da diva à dúvida dádiva.

Os fins do mundo.
Em hai kais há cais
Barcos em mares planos
Fin-dos oceanos.
_
_
_
Amar-go.
Eu abro o peito
Medo de ser última
Não diz ai — e cai.
_
_
_
Re-legião.
Fé que só eu crio
Cruz que só o meu eu creu
Até eu, ateu?
_
_
_
Nadacomoteceu.
Corro por jardim
Mas caio sem aviso
Jardin(')finito.
_
_
_

A leva de lava é luva quando o livro livra ou lavra.

28 de maio de 2006

Universo pela tangente.

__"De que mundo você é", perguntou alguém.
__Na primeira vez que ouvi, custou-me a entender o que aquilo significava. De primeira, pareceu um insulto. "Sou estranho assim?", pensei, e depois responderia dizendo "Do mesmo que o seu!", mas sem sucesso; então, desisti da idéia. Tive que me acostumar até saber que a pergunta poderia ser também um elogio. Hoje, eu assumo que devo ser um alienígena, pelos mil motivos que percebam os outros dos outros e de meus eus.
__Existem, no entanto, estranhos por toda a parte. De muitos mundos. Sei que, de todos os planetas, sou do mais distante. Aquele que completa a volta em torno da verdade com mais vagareza que qualquer um. Vago transladar. O mesmo acontece para a volta em mim mesmo. Muitas vezes, por ficar de costas para a verdade — acreditando na sombra como a grande boca que vomitará a qualquer momento a outra verdade, escondida atrás das estrelas — deixo passar por mim meus vizinhos, minhas alegrias. Quando me volto, lá está ela, fugindo de mim, correndo atrás de si mesma. Sou um mau — com U, mesmo —, um mau distante.
__Outras vezes, já estou pronto a recebê-la; porém, fico distante, o que me faz, se no mesmo pique dela, ficar para trás na translação de nossos espaços tão vácuos. "Que pena", dizem, "por seres tão lerdo, e por ser tão ligeira". Os corpos se despedem, apesar de manter o fio da reta invisível dos olhares no mesmo campo gravitacional.
__Cada planeta com suas afinidades.
__Todos, por uma ou outra vez, cruzam a linha que me separa da verdade luminosa, que aquece o dia e sombreia a noite. Tal cruzamento é o eclipse. De repente, não se vê nada no céu além de suas formas e os fios de ouro tangendo seus contornos, como se aquela fosse uma enviada de outro mundo, caminhando centralmente em minha direção, com um único objetivo de me fazer esquecer a ofuscante verdade — o sol, e sua monarquia cotidiana das voltas e voltas sem sair do lugar. Ah, mas que pena!, quando já se está cego de admirá-la, o instante do tempo se move, e lá está ela, a verdade, novamente a cegar-me, e os fios dourados se tornam jorros de luz, queimam a face — a cicatriz que não é nada, foi queimada pelo sol —, e as suas curvas distanciam, partem à frente, dão adeus, e a corda de seu olhar se mantém esticada, até que a curva do trajeto de seu planeta complete seu arco, deixando-nos, dois mundos de diferentes ritmos, opostos pelo sol; e o fio invisível queima na chama do centro, que, ironicamente, é a mesma chama que mantém os planetas unidos e no mesmo anel de luz.
__As afinidades são como bons perfumes. Quando seu mundo passa pelo meu, seus braços invisíveis puxam-me pelo olfato, extrai-me o peso do corpo, faz flutuar nos ares, onde seus dedos também flutuam, deixando seus rastros de mulher. “Passou por aqui uma flor.” De meu mundo tudo é visto, e aqueles seres cujo perfume arrasta-me pra fora de órbita, têm vantagem de anos-luz. Mas, como já disse, para deixar ser levado, é preciso estar de frente e não ter me virado em busca de outro lado. Neste caso, o "caso da curva de concha tímida", resta sempre aquele velho e empoeirado telescópio, que me faz sonhar perto dela. As lentes marcam meu olho, por colar a face ao tubo; isso porque quero para sempre uma visão tão próxima e não ter que voltar à vista das luzes da verdade — que cegam aquele que busca tais planetas, pedidos no espaço, no tempo e no vácuo. Que tristes são os intensos desejos de diferentes ritmos!
__Uma semana de caos. Há muito tempo, dele surgiram as formas.
__Uma semana onde as criaturas e criadores inverteram seus papéis. As formas geraram caos, e agora se espera o que ele novamente parirá.
__Caos. Possibilidades. Surpresas. Inesperadas. Multiplicidades para longe do óbvio.
__Quando passares, deixa-me aspirar as rosas de teu pescoço, ainda que, ao tocar-te, arranhes meu peito. Quero gravar o teu cheiro, e guardá-lo numa caixa de Pandora. Quando minha vigília apaixonada ceder ao sono da espera, se passares por mim de soslaio, meu instinto latente despertar-me-á ao sentir as narinas puxadas pelos dedos de seu perfume, que me inspira quando o inspiro, desse mundo que me aspira quando o aspiro, e que me agarra pela aorta.
__Coração dividido, quem tem dois sóis não percebe os planetas que nos tangem. Deixa que o próximo eclipse não seja o solar, que este aí cega. Que venha o eclipse dos olhos, que se fecham à órbita das bocas unidas.
__
__
A lava lava e estoura, até que o brilho seja visto através da verdade.

20 de março de 2006

Paixão Paleolítica

__Prólogo — Arte e crença

__

__Um grupo de arqueólogos penetrava na caverna e nas gravuras das paredes pintadas há milhões de anos com os rabiscos paleolíticos.

__Iluminavam as pinturas em busca de comprovações e descobertas.

__— O que pintavam?

__— Seus desejos.

__— Caçadas, alimento?

__— E proteção.

__— Por quê?

__— Era a crença.

__— Se pintassem...?

__— Seriam abençoados.

__— E haveria fartura?

__— Pela força do místico.

__Acreditavam encontrar provas de um povo antepassado, mas não foram apenas caçadas e ritos que enxergaram pelo clarão.

__Inesperavam por aquilo que viram.

__

__

__Parte I — Vestígios prodígios

__

Na luz da lanterna focados
À ordem a seguir dos rabiscos:
Homens no muro pintados
Venciam aos bichos ariscos

__

Mas viram, os exploradores,
Que havia um desenho à parte:
Um par, em aura e em flores,
Unidos, a Vênus com Marte.

__

"Se os homens, com a fome doendo,
Pintavam, traçando em fartura
A carne, no místico crendo,
Que será esta estranha figura?"

__

"Parece que uma alma isolada
Pensou que, se havia magia,
Talvez pintado a amada
Um dia o desejo viria."

__

Como está nosso apaixonado?
Que fim teve seu caso oculto?
Um anjo alado?
Ou triste vulto?

__

__

__

__Parte II — A invenção do mesmo

__

A primavera com seus pássaros trazidos de volta com a brisa
Fez de cada lágrima uma nova chama que natural nascia
Quando o fogo alcançou o céu a sufocar flores que a terra pisa
Animais a pular se exaltaram com o calor que se consumia
Energia zero, finda a flama que secou as fontes, ilusão
Folhas forraram o leito de um homem partido e sem alento
Frieza d'alma recolhida à concha e feto, suma solidão
Descansa em paz à espera triste do seu auto julgamento
E pra curar tais dores!
Nasceram flores!
E pra esquentar o amor!
Veio o calor!
E pra queimar a alma!
Amarga calma!
E pra apagar o inferno!
O sono eterno!

__

__

__— Fogo, metal, níquel, papel, barcos, carros, casas, ruas, prédios, povos, crenças, mitos, votos, pólis, força, ritos, luzes, redes, fones, linques.

__— Evolução inter?

__— Revolução intra?

__— Homo sapiens, o uga buga.

__— Homo sapiens, uga fuga.

__

__

Da Mãe está acima o ser dominante
Hegedomina, tal bicho pensante.
À caça fácil rimou com magia
Em seu palácio, tecnologia
Chefes monarcas, escravos plebeus
Provou ser o homem à imagem de deus.

__

E as cartas, correios, serenatas, e-meios
Os quadros, os fados, as fotos, os fatos
Filmes comprados, discos gravados
Pelúcia, astúcias, dilemas, poemas
E flores pela internet.

__

À caça fácil rimou com magia
Em seu palácio, tecnologia
Potencializou-se à imagem de deus
Racionalizou-se, os desejos seus
E para o seu amor superou romeus
E para o seu vetor, tantos apogeus!

__

Que faria nosso apaixonado?
'costumou-se ao moderno e tudo?
Pierrot engajado?
Palhaço mudo?

__

__

__

__Parte III — A tríplice de um tal filho pródigo

__

__ Aqui embaixo, lembrando... o mito da caverna.

__— Que tem?

__— E se não existir caverna?

__— [...]

__— E se não houver superfície?

__

__

O homem cresceu, se multiplicou
E a concorrência também se alastrou
A sobressair, no rosto pintou a fuligem

__

Bumerangue liberdade, consciente bangue,
"Guerra de propriedade, e não de sangue!"
De tão racional, o homem voltou à origem

__

Na consciência opostos
Inconsciência, iguais
Os mesmos pressupostos
Selvagens animais

__

A lei do mais forte — ser grande ou a morte
A seleção natural — ser belo afinal
Adaptação ao meio — o esperto entreveio

__

Pra ser-me perene — passar o meu gene.

__

A mim eles se humilham!
— Da tríplice compartilham.
De inteligência tenho mais!
— Poder, sobreviver. Fatais.
Vim, especializado!
— Como meus outros animais.
Departamentalizado!
— Distintos, tão iguais.

__

Ao cético, acaso, ao romântico, destino
Milhares por dia cruzamos em rede
Àqueles é atraso, ser a estes, menino
Qual das pessoas é a pintada à parede?

__

Diga, "a fila anda em continuidade
E o que vale em vida é ser feliz"
Ainda que esta sua felicidade
Seja instinto de toda a matriz.

__

Que fará nosso apaixonado?
O desejo pintado em suma arte?
Amor trifiltrado?
Ou ser à parte?

__

__

__

__Parte IV — A metrópole coração metrô

__

__ Que fofo! Aqui, sem sinal. Mas ele ligou. A mensagem.

__— Sente sua falta. Já este homem, pré-artistórico, tinha a musa mais próxima.

__— Mas hoje, inevitável! Trabalho tão longe!

__— Inventamos para suprir nossas faltas. A tecnologia é uma bóia. O sinal, uma corda.

__— Vamos sair, por telefone, Quero te ver, por um e-mail... Drible à rotina, surpresa animação!

__— Mas beijos pela net, abraços por telefone, parabéns por orkut? Distante aproximação!

__

__

Mil maneiras de com outro falarmos
E com cada mil que na rua encontrarmos
Mantenha o tato, mantenha a visão
Paladar e o olfato, também a audição
E o sexto sentido ao caos se declina
Será que ao acaso a paixão se destina?

__

Não se vêem, virtualmente eles se falam
Teclas profundas, enquanto bocas se calam
Um saxofone triste, sou eu que descanso
Ganhar o seu fone é pra mim grande avanço.

__

Cruel plataforma aproxima pessoas;
Mas o coração se lamenta: a distância!
Muita energia, ou senão foi à toa;
E torcer que não seja uma mera fragrância.
As sintonias diferem, e destoam;
Fadado ao de novo, e mais redundância.
Pra uns, como luzes, as escolhas soam;
Outros nos beijam sem significância.

— A liberdade é encarada com vigilância.

__

Não depende da magia, só de si mesmo
Saudades de quando dava força pintar
A cidade aglomera numa abraço a esmo
E cada um sonha com mãos se cruzar

__

Vizinhos que não se falam na inter relação
— Dá licensa, aí vem o bonde!
Conheceu uma garota, numa outra estação.
— De tão perto, de tão longe.

__

Os veículos mostrarão que nós, ativos,
Não nos somos próximos, só estamos vivos.

__

Pintará nosso apaixonado
A pedir, sonhando em luz?
Lado a lado
Do que produz?

__

__

__

__Parte V — Latente patente

__

Largue o poema, foque o problema
Largue o poema, foque o problema
Largue o poema, foque o problema
Lema, ema, lema, ema...

__

__

__"Faço, por este relatório, saber o Instituto das demais gravuras encontradas próximas à já registrada. O leão a caçar, e a leoa aguardar com os filhotes e protegê-los, com a garra, de hienas; o tubarãozinho a seguir o pai, que finge abandoná-lo, visando a independência de aprendizado; o pavão, que exuberantemente expõe suas plumas às fêmeas interessadas; e ao crepúsculo, inspiradas em cores, cantam cigarras aos ouvidos de parceiros sensíveis.

__Em grupos nadam os peixes, fogem da lança do homem; baleias se hospedam em baías quentes para abrigar seu parto; e depois somem, perfeita logística; cães selvagens domesticados, aprendendo ordens e gestos; e os mamutes, que despedem o velho que atrasa a organização construída."

__— De que então difere o homem, se o que fez além destes bichos foi matar à toa, dominar a proa, e castrar os instintos para instaurar um sistema de exclusão?

__— Como se os predadores já não lutassem para impedir a perda de um poder?

__

__

Amor, um mero instinto
Da genética sócio-fraterna?
Ou será símbolo distinto
Perdido na velha caverna?

__

Como terá visto nosso apaixonado?
Ao sair, pro mundo, da sombra e tumultos?
Platão inspirado?
Ou cópia dos vultos?

__

__

__

__Parte VI — Quando a fome aperta, a vergonha afrouxa

__

__ Você, aqui, gosta do que faz?

__— ?

__— Podia ser diferente? Foi escolha sua? Foi resultado dos fatores?

__— Eu acho que sim.

__— Que gosta? Ser escolha? Que resulta?

__— Que se eu amasse, diria que é uma saída. Gostar mesmo, pintaria paredes.

__— No entanto...

__— Trabalho descobrindo crenças. E a Colombina.

__

__

O dia não existe das oito às seis
Entro num portal do tempo de uma vez
E saio dele o mesmo, só que indisposto
Talvez experiente, apenas mais um posto
Preciso viver sem sombra à minha costa
Assim o dia sem pensar que foi uma bosta
E que não serviu somente por dinheiro
Nem que eu cedi às ganâncias do puteiro
Grana é gana, organização, dominação
Ou até os meios, sim, mas a vontade
É a força que move a liberdade
Senão que importa ter os meios
Se não se enxerga os fins?
Do contrário, álcool sem freio
E coitados, meus rins!

__

__

__— Antes de irmos, quero fotos dos desenhos.

__— Pra quê? São só desenhos!

__— Porei num retrato de minha mesa.

__— Lembranças de um trabalho?

__— Razões para manter-me motivada.

__— O trabalho do solitário, perdido no tempo?

__

__

Ao tempo ninguém se explica,
Pois ele vem e pica,
E será mais uma história à altura
Mas deixada à pintura
Que durou profunda num momento
Mas perdeu-se em pensamento.

__

Como encarou nosso apaixonado?
Às forças cruéis que regem da fome?
Viveu sedado?
Morreu homem?

__

__

__

__Parte VII — A ilusão das águas

__

Quando acordara
E o tempo passara
Levantou-se e deixou o homem na cama a sonhar
Perdeu a hora
Um tac pra trás é um trem que lá vai a trotar.

__

Vinte minutos depois
Embarcou na estação um outro alguém
Este é o homem do acaso, do jogo e do além.

__

__

__Depois de conhecê-la, e ligado, e escrevê-la, e visto, e tê-la, magoou-se, mas sem odiá-la, passando o rancor, mas passado as horas, um mês às demoras, sem lê-la, sem tecê-la, sem seu olho aprofundar, naquela água penetrar, conformado com suas intenções pela tela, ao léu do acaso de encontrá-la, num desses metrôs da internet, e dizer um oi, ou uma frase que resuma o que se sente, pois mostrar lhe foi vetado, se um não quer, dois não dançam, fingindo estar suficiente, atuando, interpretando um outro que não se importa com sua saudade, com sua vida, com sua vontade, com sua ida, e por isso pinta na parede de sua caverna, pinta à sua volta, pinta a sua volta [...]

__

__

Quando encontra, o apaixonado em fossa
Um'água, seja gota, balde, mar ou fosso,
Pensa: poça?
Outro poço?

__

__

__

__Epílogo — A carta à garrafa, a garrafa ao mar

__

__[...] usando sua arte, sua tela, sua cela, seu papel, seu mausoléu, como sua caverna própria, escrevendo num plano, acreditando noutro, torce o homem, e arteia seu sonho, enaltece pidonho, pois daqui milhões de anos, entra alguém na sua casa, alguém, com curiosidade vasculhando, nos achados pré-históricos, recentes passados, lerá suas gravuras, as aventuras, saberá que um dia, tal homem preferiu a caverna, do que os mil rostos diários, vazios, crendo no abraço ser portal do tempo, e no beijo, o da eternidade.

__

__

O tempo que liga distantes planos
Um passo atrás, consente
Depois de tantos à frente
Telefono buscando tu
Ocupado, soa o eu
A carta que nunca vai
A ficha que não me cai
Ensaiando pra sempre atrás dos panos
O tempo que liga distantes planos

__

O homem pintava em parede por motivos nele crente
Lança ao mar a garrafa, e escrever não é diferente

__

Num vidro, boiando, em fome e bravo?
Pronto a esfregarem, sentir o trovejo?
Um gênio escravo?
Dos três desejos?

__

__

Em fim.

__

A lava encanta e espanta, pois, paleolítica? — Escava sentimentos.

19 de março de 2006

Gerúndio caduco.

A espera,

A cama pra sonhar com meus prazeres.
A cama pra lembrar dos afazeres.
A cama pra transar com meus dizeres.
A cama.


a fome,


Acordo com vazio de existência.
Acordo com vazio de resistência.
Acordo com vazio de desistência.
A corda.


o caos,


As forças que acumulo se esvaem.
As forças que acumulo se distraem.
As forças que acumulo se me traem.
Há forças.


o trabalho,


Cadeia pra ganhar o dia-a-dia.
Cadeia pra ganhar o que queria.
Cadeia pra esquecer da alegria.
Cadê? Ia!


o pensamento,


Eu ando por um campo negativo.
Eu ando por um campo relativo.
Eu ando por um campo sedativo.
Eu ando ando, endo, indo e úndio.


o pesadelo...


( )___ Anda, ah!
( )___Lenda, uh!
( )___ Linda, oh!
( )_Segunda, ih!
( )_____nda, eh?


...e a aurora.


Um dia essa vida vem, se cerra.
Um dia essa vida vem, se enterra.
Um dia outra vida vem à guerra.
Um dia.
_
_
_

A lava demora.

8 de março de 2006

A mulher e a gramática.

__Hoje, Dia Internacional da Mulher, e tem um e-mail circulando por aí que foi um empréstimo de inspiração minha para "gerar valor de marca" à empresa (Submarino). Senti-me no direito de publicar aqui, claro, então lá vai.

________________________________

__Talvez a palavra mais delicada de se definir na gramática seja "mulher".
__
Substantivo? Talvez seja o mais correto. Mas é incompleto. Primeiro, porque mulher não se nasce feita: torna-se. Nasce em forma concreta, mas se completa em caráter, no abstrato, apenas com o decorrer da vida e de seus feitos.
__
E mulheres existem várias. Mas quando, de repente para alguém, passa a existir uma só, mulher deixa de ser plural para se tornar substantivo próprio, único. Vira mulher com M maiúsculo. Então, ela se torna referência, característica de comparação, e, por isso, até pode ser um adjetivo. E o mais poderoso.
__
E para ir além, é com um toque de interjeição — porque faz parte dela a emoção e o sentimento — que consegue ser tão necessária ao dia-a-dia, fazendo-se, por isso, mulher.
__
Substantivo concreto ou abstrato? Adjetivo ou interjeição? É melhor ficar só com "mulher" mesmo. Porque se conceitua em si e, pra falar a verdade, nenhuma classe ou palavra irá conseguir definir o ser que só uma mulher consegue entender. E na falta de definições, fica a homenagem a você, mulher, pelo seu dia. Parabéns.

________________________________



A lava de bisnaga e tela.

5 de março de 2006

O Casulo de Mármore

Prólogo — Uma História Conhecida

__

__A história começa da mesma forma como naquela que conta a paixão que o artista sentiu por sua própria obra. A beleza é uma tremenda armadilha, se não se aprende a encantar e encarar Afrodite.

__

__

Parte I — O Solo Etéreo

__

Eterna ao tempo
Olhar generoso
A musa que à forma se petrificou.

__

Sonhando ansioso
De amores crescendo
Sedento, o homem que a ela criou.

__

O dia nasceu
A musa morreu
E a obra ainda viva a calar,

__

Sedado ao venoso
Em nuvens de gozo
Ao mundo deixou de contar.

__

Nuvens não sustem a vida
Um dia, sustou.

__

__

Parte II — Recluso À Concha

__

Vieram seus amigos e chamaram pra sair
"Mulheres, das milhares, vais topar, é só partir"
Ouvindo ao umbigo, pensou antes de parir
As frases que respondem ao luar:

__

Eis desgraçado destino, que foi me criar o mais belo ser
Que um dia, podia encontrar, mas que nesta vida, só assim posso ter
À noite em caçadas, com cartas marcadas, não ouso a ela deixar
Fico sozinho, a chorar de tristeza, mas forças não terei por lá
Por ter esculpido um amor, que a mim não mutuará.

__

Em solidão foi crescido
E em solidão irá
Conhecer esta dor
De calcinação
Pois o amor foi pra si
Representação.

__

__

__

__Muitas folhas dos mesmos ramos caíram, e diversas foram a vezes que o inverno as soterrou com seu gelo silencioso, para que depois viesse a aurora e enchesse de esperança o artista, que sonhava com uma fada encantada que tornaria seu fado justificado, animando a sua obra.

__Chorou muito por não ser viva, mas o tempo não esperou, e um dia, já envelhecido, acordou, e viu, horrorizado, a estátua, que, por acidente, ou causa desconhecida, havia tombado, e se partido em mil pedaços frágeis. Como aconteceria ao artista.

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Parte III — Chuva Salgada

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Desgraça maldita, esforço em vão!
Lágrima na areia, colheita do não!
Que faço agora, sem quem abraçar,
Sem onde apoiar-me pra mais me criar?

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Quão frágil a obra
Que a paixão sustentara
Quão frágil a vida
Que à paixão procedera.

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A modelo, já morta, não pode mais me nutrir
Morra, fada, que ao fado enfado tardou a vir!

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Quão frágil a obra
Que a paixão sustentara
Quão frágil a vida
Que à paixão procedera.

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Parte IV — Espelho Partido

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Desesperado atou de grão em grão
Os cacos do que restou esparramados ao chão
Uniu, perfeitos, como antes, quase tão
Mas era quase, o suor em vão.

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A face facetando buracos
Espelho quebrando em nacos
Fendas desenhando opacos
Coração e alma em cacos.

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Sete anos de azar a compor
No espelho, um mosaico da dor
Todos anos de azar a compor
Um retrato, um mosaico da dor.

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__De longe, ouviu alguém a suas exclamações, e este alguém logo foi ao seu socorro. Pois sabia aquela visita que a culpa, no fundo, tinha parte à sua travessura inconsciente.

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Parte V — A Criança Que Brinca

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Compreendeu sua dor, sem no entanto poder consolar
O filho da musa, que sentira no artista o declive
Sabendo onde fora enterrada, não poderia flechar
Pois Eros só atinge aquele que ainda vive.

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Sua vista é cinza, e não flore
Capta quem anda, quem cede seu ego
O alvo é quem inflama, colore
Pois, parado, o deus é mesmo cego.

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Quão frágil a obra
Que a paixão sustentara
Quão frágil a vida
Que à paixão procedera.

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Parte VI — Por Querer Lapidar, A Lápide.

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Gelado foi ficando o desgraçado que não ria
Pés, mãos, até que o corpo, por fim, suspira
Jogado ao campo, onde despedaçado jazia
Seu corpo, que, já duro, à estátua se fundira.

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Enterrou-o sozinho o filho de sua musa
E fizera de sua lápide os cacos da obra
Pra que dos restos da arte sinalizassem a recusa
Que o artista fizera, chamando, a tudo, de sobra.

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Não deixou filho, compensarei aqui com uma a árvore
Pois também se quebrou sua obra, e eras tu o mármore.

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Parte VII — O Remorso Da Paixão

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__Um recado deixou o deus ao pé da muda da videira que plantou próximo ao mosaico, e serviu de epitáfio ao pálido criador.

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Fui eu quem quebrou a estátua, pois a atingi com minha flecha
Fui eu a fada de teu fado, que, por loucura, assim desfecha
Tu, que tanto me louvaste, achei de uma chance merecedor
Mas não pude animar a tua obra, pois animado estaria tu em flor
Não te quis quebrá-la, mas não medi forças
Só quis que tivesse nela o amor de todas moças
Pra que parasse de chorar, pra que parasse de sofrer
E voltasse a falar, de mim, pra todos ver
E nutrir em ti, tu mesmo, em fonte.

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E se um dia achares no direito de a mim vingar-te, serei honrado.
Mas só aceitarei a fúria, se matar-me em arte, a ti representado.

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Parte VIII — A Compaixão Dos Mortos

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A causa da tragédia fora descuido do criador?
— Por negligência deverá sofrer em eterna dor.

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Ou fora o vento de Hermes o destruidor da escultura?
— Então uma mensagem não chegou à estrutura.

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E se fora um animal selvagem que a derrubara faminto?
— Não seria digna de ser bela, por não vencer o instinto.

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Quão frágil a obra
Que a paixão sustentara
Quão frágil a vida
Que à paixão procedera.

__

Homem sofrido, levanta e me ouve
Tu me criaste a mais linda que houve
E agradecer eu teria que também
Se não fosse um porém.

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Tu és o último a supor-me fato perfeito
Visto que fora causa da queda ao seu leito
Entenda que crias, eu nasço e amém
Não me prive do além.

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O mármore é minha forma, mas não a minha alma
Eu tenho tu em mim, mas não tenha a mim em tu como ferida
Minha alma tinha sua semente, sua flora, sua fauna
Eu voei, saí para a eternidade, e não entendeste que eu criara vida.

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Parto no seu parto
Mas foi por ti, pai enciumado.
Parto, mas não aparto
Porque sou ti, deus de seu fado.

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Parte IX — Não Se Captura Estrelas

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__A alma da musa, visitado seu vetor, despediu-se, até quando os destinassem o tempo, mas sem antes deixar no céu uma mensagem.

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Alçado o vôo, explodiu-se em mais mil pedaços
Espalhando-se por todas as terras seus estilhaços
E inclusive sob a face daquele que estava a chorar a véu
Mas já soluçante, contorcendo sua mão, apontando ao céu.

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Quão frágil a obra
Que a paixão sustentara
Quão frágil a vida
Que à paixão procedera.

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Epílogo ou Parte X — Casulo de Mármore

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Dali se foi, voltou a dor
Trouxe a cruz, o choro e a luz
Mas levantou, alado em jus
Voar pra lá, pro seu amor
Que nada é senão criar
Que a viver, que respirar
O Exo rompeu, e a ele viu
Livre do corpo que o pariu
Pois tua maior obra é
Pois tua maior obra é
O choro e a luz

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Que nada é senão criar
Que a viver, que respirar
O Exo rompeu, ele cresceu
Livre de quem o concebeu
E encantou, polinizou
E inspirou, ali cantou
E não temeu, e não tremeu
Pois tua maior obra é
És tu.

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Pois tua maior obra é
És tu.

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Mármore: rocha metamórfica
encontrada perto a regiões
de atividas vulcânicas.

A purga atrás da orelha.

__Purgatório. Fora o lado teológico ou pensamentodopovoilógico, significa: "purificação", "limpeza". Duvida? Vê no dicionário. Ou, então, leia um caso de.

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__—...e por ter visto muita TV, vai sentir dor de cabeça durante todas as manhãs a partir de hoje! Ah não... pensando bem, você já não deve ter muita cabeça mesmo... Tá bom, você, por ter visto muita TV, vai ser obrigado a ler Ulisses em aramaico, latim, em português com a tradução de títulos de cinema brasileiros e em português com a tradução simultânea do Oscar! E por ter colado na escola, vai ser crucificado num lápis gigante, ficando a ponta logo na altura de sua cabeça, e terá que escrever vinte provas discursivas, sem consulta, com o lápis no qual estará crucificado! Agora, leve esse boleto alí naquela fila, meu filho, e aguarde na sala de espera. Próximo!

__— Endiabrada Majestade, o próximo a ser julgado dentre essas paredes de fogo já está pronto.

__— Pois não me faça perde tempo e mande-o logo entrar!

__— É que... chefe, este aqui já é conhecido nosso...

__— Hein? Quem vem lá?

__— E aí!

__— Ah, não, você de novo?

__— Cara, juro que dessa vez é sério.

__— Cala a boca e deixe meu capanga ler o que vem na sua súmula.

__— Infernal Majestade, aqui consta que nosso amigo presente e a ser julgado veio com os próprios pés que a mente lhe proporcionou, e que na realidade ele não está morto.

__— Calma, cara, eu posso explicar!

__— Puta merda, filho, quantas vezes eu já te falei que aqui só vem quem morre lite-ral-mente?

__— Mas foi quase isso!

__— Ora, moleque, você morreu, de novo, lite-ratura-mente. Tem diferença. Vou ter que castigar por ser burro, agora?

__— Mas eu morro! Olha esse caderno aqui, olha quanta lágrima tem! Mais que tinta! Tudo que sinto, escrevo, quero dizer e viver disso, que até que faço bem, mas, pô, isso aqui me faz sofrer! Eu já pedi umas três vezes pra me ressuscitar como uma pessoa que fale mais e escreva menos! Todo dia eu deixo de provar o vinho porque escrevo sobre a uva! Ou perco a noite porque fico pensando em como me expressar sobre a sensação que o pôr-do-sol me causa. Ou—

__— Ha, chefe, esse aí deve deixar a mulher dele bocejar na cama, porque em vez de ir lá com ela e dar uma foda, fica escrevendo sobre "a beleza do reflexo da lua na suas curvas generosas" a noite toda, ha ha!

__— Ha! E pior que é mesmo, senão ele não estaria aí, silencioso. Caralho, hein?, que vergonha de você! Por isso que eu odeio quando você vem pra cá, acaba desonrando esse antro de pecados. Ninguém nunca te disse da tríplice suprema? Águia, leão e touro? Ou mente, corpo e alma? (Não é respectivamente, porque esqueci, mas você entendeu, filho). Mas então. Porra, essa tríplice está aleijada em você!

__— E pior que eu sempre digo isso...

__— Pois então! É esse seu problema, seu idiota. É isso que te faz, cof cof, morrer! E estou te xingando porque você enoja este recinto, e quero que saia logo. Mas como eu temo que você volte em breve, então, tá, vou te dizer umas boas, pra ver se aprende.

__— Vai.

__— "Faça o que eu digo, não o que eu faço." – Essa frase tem tudo a ver com você. Mas o problema é que você é tão ridículo, que consegue ser enquadrado na frase clichê pelo seu sentido oposto, há ha! Você é um gênio, sabia? Porque, enquanto geralmente quem fala isso é aquele que comanda o socialmente aceitável, mas que age inaceitavelmente, você diz a todos o inadequado (e por isso tem tanta gente que diz, "Óooh!"), mas, há ha!, faz igual a um cordeirinho, socialmente enquadrado. Pior! Porque até a sociedade aceita, com bico, mas aceita, certas coisas que você não faz. Você é um cara que seria glorificado num monastério, quer saber. E que ironia, você, que há tempos atrás era contra tudo aquilo de religião, ouvia direto a música que fala "father, I want to kill you", e adorava essa metáfora do "matar o pai", ou o que te prende aos ensinamentos, e blá-blá-blá. Que ironia!

__— Uma parte de mim tem medo.

__— Medo? Se isso for medo, os gritos dos filmes de terror são miados! Você deveria tomar um banho de sangue, limpar esse mofo do seu corpo. Uma mente tão boa, um corpo tão magro e podre! Isso é falta de exercício.

__— Mas o que posso fazer então?, caralho, se minha vontade de arte é tão grande assim!? Pára com essa ironia de merda e me diz algo proveitoso!, que eu nunca mais volto a esta porra lugar.

__— Ui, que boca suja! Te toquei, é? Ma, isso, cospe pra cima. Seu tolo. Toma isso.

__— Mas o quê?!... uf!

__— Eu só dou conselho a quem tem cicatriz. E você nunca se arriscou, logo... vai ser pro seu próprio bem. Toma!

__— Agh!

__— Só falo com quem tem o olho roxo, o nariz escorrendo sangue, os dentes frouxos, o braço quebrado, a perna torcida, o estômago socado. Ah, seu revolucionário de internet, seu romântico virtual! Acha que sofre muito? Que tal agora? Tá bom ou quer mais?

__— ...pare...

__— Resposta errada! Toma!

__— Chefe, não acha que—

__— Calado! E você, toma essa, seu anjinho! Isso, limpe com seu sangue esse perfume de alma que fez feder meu inferno. "Limpe" se rastro limpo com suas vísceras!

__— ...pá...ra...

__— resposta errada! E dessa vez, nem teve pergunta! Vai tomar de novo!

__— ...

__— Majestade! Ele parece morto! Só que... lite-ral-mente. O que você fez, chefe?

__— Ora, você por acaso gostava dele?

__— Não, mas se ele vivo já me encheu o saco, imagina ele tendo que vir aqui de qualquer jeito, por estar realmente morto?

__— Calma, ele não está defunto. Ou está, boneca?

__— ... co... continue... porra.

__— Ah! Finalmente ele aprendeu. Ele não é tão burro assim. Vamos lá então. Me dá aqui esse caderninho limpinho. Isso. (Dói, umas porradas, né? He he.) Agora, dá aqui esse livro seu publicado. Vamos colocá-los na balança. Sabe que balança é essa? É a balança da alma. Vou comparar a sua realização com o que você deixou de fazer. Vamos ver... aqui... pronto. Ah, eu sabia! Veja como seu caderninho pesa muito mais que essa bíblia que você escreveu e publicou. Claro! Mil livros seus não valem o brilho de teu caderno. E eu sei muito bem que você entende o que eu quero te passar.

__— Não...

__— Oras. Me diga: como você escreve? O processo, da idéia ao finalizar, essas frescuras de escritor.

__— Eu... tenho a idéia; escrevo de qualquer jeito no caderno; daí, num outro dia, abro; leio; se ainda fizer sentido, eu começo a digitar; e vou lapidando; até chegar no que eu publico.

__— Exatamente. E quer saber? Essa é a grande metáfora da sua vida. Ou, como preferir, dessa sua morte. Morte imaginária.

__— ...

__— Você quer escrever a sua vida, não quer? Quer, mas! Reflete tanto, e demora tanto para sair de seu caderninho, que a perde! Esse seu caderninho é a extensão de sua mente. De sua memória. Você quer guardar o momento, mas para compartilhar com os outros você simplesmente não aceita a imperfeição! Quer que seja memorável, mas pensa tanto em como escrever, ou como viver, que acaba "morrendo". Sua vida é linda, acredite. Mas somente dentro da cela que é este seu caderno. Isso aí dá tantos anos de vida! Mas o que você tem de rascunho, tem de perdido. Aí, quando vem a lembrança, ou quando você abre de novo a porrra do seu rascunho, já não tem a energia daquele momento que o inspirou. Aí fica nesse saudosismo abstrato, saudades de não ter feito, só ter sentido. Você é um cara que tem muitos sentidos agudos. Exceto o tato. Ou con-tato, sacou, sacou?

__— A águia está mais forte que o touro e o leão juntos...

__— Isso. E, sinceramente, onde já se viu isso? Nem metaforicamente isso é aceito; já que, metaforicamente, a águia mais forte é você, e veja seu estado... “forte”.

__— O... obrigado...

__— Espere. Tem mais, tá pensando o quê? (Já disse que não quero que volte aqui tão cedo). A águia, preste atenção, a águia tem toda a atmosfera do mundo para aspirar. E o aspirar é a primeira fase da respiração, que oxigena o sangue. Sim, o sangue, que leva energia pro coração, e para as pernas. Suas pernas têm energia de sobra, mas estão explodindo. Ela espera demais o aval do cérebro, da águia, mas o pulsar é a cada segundo, e por isso , quando viu, a perna já tropeçou em si mesma. Isso não é harmonia. É por isso que você não se cansa. Você não se acaba. Você acumula energia que te implode, ou explode solitário, que por isso vira um vulcão (como você chama aquele sitezinho com textos, mesmo?), e aí sempre tem fôlego pra tudo, mas nunca fica ofegante. Potencialmente, você até que é foda. Mas (outro trocadilho, posso?). Potencialmente é foda, mas esse seu caderninho é só punhetinha. Só aspira, não expira, só aspira, não expira. Você não vai chegar lá assim. Seu... “aspirante”.

__— Putz.

__— É. Essa doeu em mim também. “Aspirante”...

__— Mas até que faz sentido.

__— Pronto, acabou a festa. Agora, suma daqui!

__— Cara... obrigado. Isso são lá verdades. Sumo daqui pra já.

__— Mas calma, eu quebrei sua perna, não vai tropeçar!

__— Não preciso dela. Não aqui, agora. Olhe.

__— Ah, sim. Você e suas asas de fênix imaginárias. Vai pro inferno. Que dizer, não!

__— He he. Adeus.

__— Quê?

__— Hã, hã? Sacou?

__— ...trocadilho maldito... Antes de ir, só mais uma coisa.

__— O quê?

__— Tudo isso que eu disse não serve só pro seu escrever, ok?

__— O que quer dizer?

__— Bom... É que me daria muito gosto te foder com meus castigos purgatórios, depois que você morrer de verdade. Mas!... apenas se isso aqui existisse e não fosse outra invenção sua, não é mesmo. Afinal, você já leu aquela sexta parte do terceiro capítulo de Crime e Castigo. O inferno não são só os outros. Enfim, você entendeu o que quero dizer.

__— Entendi. E... até um dia.

__— (Tomara que não.)

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__

__Todo o inferno está contido nesta única palavra: solidão. (Victor Hugo)

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__Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno. (Van Gogh)


A lava purga.