3 de abril de 2005

Livro-me às traças.

Jogada às traças, num canto de armário, a mórbida traça falou sem papel:

— Tu me envenenaste, ó falsa etiqueta, brilhante tecido à base de fel.

A história da traça é triste e verdade. É triste e humana, pequena que é, e coberta por casco. Não fosse a tecnologia e aquele inseticida, não estaria caída, reclusa a seu fim.

A traça vivia numa biblioteca, e tinha a vida a marcar rastros e botar ovos. Diversos livros já haviam sido devorados, e a falta das palavras — ou o domínio, se falarmos da traça — desvirtuava a mais completa e cheia das bíblias. E por ser tão suficiente ao bicho aquela biblioteca, dedicou-se a viver dali pra sempre.

Havia muito de comum nas ruínas e destroços deixados pelo inseto. Eram livros com mofo — o seu melhor amigo, sempre presente em banquetes —, livros amarelados, velhos na estante, mesmo novos na publicação. E até a janela, que chega a ser alma refrigeradora e ventiladora daquelas pilhas de livros, calava-se, não permitindo nem a menor fresta de luz iluminar a velha abandonada.

Mas um dia alguém contratou a empregada, que pegou o inseticida e obrigou a traça a mandar-se dali. Tirou um clássico, assoprou, cutucou e botou de volta. A contratada também limpou do pó os móveis e do mofo os volumes esquecidos, e após o serviço, fechou de volta o reduto do intelecto.

— Adeus, meu amigo, disse a traça. Tu és um felizardo por ser fênix, que ressurge da umidade e da escuridão. És um ventre de idéias, e a mim a partir de agora resta-me as estampas ou a morte.

— Você se esconde aí dentro, seu bichinho, dizia a empregada à traça, mas eu vejo e esmago sua fuça, se teimar a mergulhar nos estudos.

— Está ouvindo, mofo? Os donos daí não têm tempo para refrescar as leituras! Pagaram-na, e vou sem destino. Hoje é assim, nos retiram dos livros à toa. Limpam, mas pela limpeza.

E depois de algum tempo o inseto encontrou o armário, encantou-se com as promessas de bem-estar que aqueles tecidos lhe figuravam, até que um dia penetrou na etiqueta, e chegou onde sabemos. Ao veneno da capa, à hipócrita celebração naftalina. A traça nunca gostou de capas, só de interiores.



A lava lava. Quero que se exploda.