10 de agosto de 2014

Paulistano é fado

O paulistano médio alto hasteia seu lema: non ducor duco.

Fosse moral, saberia pra onde foram seus outros trilhos
que, à noite, forçam as veias alvi-rubras (cidade luz de natal)
presa em pressa e pinheiros de consumo sem data aliviante.

Non ducor duco.
Em cem anos de projetos
Cem ânus em solidão 
— por hora, na marginal central.

Non ducor duco, há cem anos também lemacidade:
"Tantos milhões de progressos!
— e quatro rodas, coroas para cada um."

Confundiu-se plano diretor com plano dirigir
(porque non ducor duco)
e step com roda reserva.

O paulistano médio do alto
de assalto farto e, de asfalto, salto
morando onde se lê lift
morando onde se lê loft
meditando onde se lê Luft
(onde, já se crê, 47% de motoristas é o mesmo que de toda a população)
traduziu 'não sou conduzido, conduzo'
em lema de honra
em tema pró-buzina
pro busão que chegou primeiro.

Tantas concessionárias, mas não concede:
beija o brasão, respira carbono fundo e brada
Non ducor, duco!


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30 de outubro de 2013

Corpo rodovia

Tens vergonha desse corpo, mortal
tal qual as estradas do Monte Atlas.
Te achas maior que o devido
e não há mais forma indevida.
Teu corpo rodovia
só nos cabe aos bons pilotos
que vai do burgo à praia
a quarenta e poucos por hora.
Menos atento, perder-se-ia a-vista
dos morros de ti mulher:
por onde se olha, horizonte em Vênus,
derraparia, não pararia o peito
que nos teus vales as estradas
ouviriam o suspiro final.
Não tenhas vergonha, terra fértil
Já a queria quando à via vim.

How is you?

Morando há quase um ano fora
de manhã não adianta:
falo inglês tão bem quanto sonâmbulo
troco your're welcome por thank you
e ajeito mal a frase em cinco pausas.

Mas à noite
o motor já aquecido
e também o corpo, e a alma
diante de uma bela garota, flerto
falando inglês assim que acordo.

29 de outubro de 2013

Tu me acordaste no meio da noite

Tu me acordaste no meio da noite
toda urgente ao pé do ouvido
tão insistente que já me pus de pé.

Resgatas-me de um sono agora
vermelha, e me convences
da importância de seu arranhar selvagem.

Mas prometes um perigo
que não cumpres
deixando meu olhar reticiente.

Tu me vens em desespero
mas no calar de tua boca
não encontrei o calor de um suposto fogo.

Só me resta a cama mole
para abraçar meu duro corpo.
Só me deste a noite fria
após deixar-me em sangue quente.

Chamaria de mulher maluca
Mas foi só o alarme (falso) de incêndio.

17 de julho de 2012

Dancas Brazileiras


PERSONAGENS
Deunisso
Pentelho
Palhaço
Hermes
Pai Euclides

DEUNISSO
O homem chegou deveras ao século vinte e um
e muitos dos de hoje habitam a era da máquina
− e não a do deus ex machina, aos romances de cinema
reservados e aceitos − discutem quando foi que ele,
o Homem, principiou a ruptura de sua alteridade.
− Etnocentrismo!, dizem uns. − Preconceito!, gritam outros.
O fato é que as crianças brothermente dizem sim aos games
mas negam seus avós, das raízes embora malemá estabelecidas,
e esperneiam pelo tecnoludens chutando o que é macumba;
e no que fecham-se a olhar o seu país da caravela
destroem sem saber (e isso passa), mas sem se importar (e isso não!)
o espírito deunissíaco da alteridade, e por isso dá que falam,
como ignopraga e, para sempre, com seus botões.
Mas calai! Todos! Que é hora de botar à prova o que digo.
Eis que vêm chegando os alunos de um certo curso
em que se pretende formar seres humanos melhorados.
Crianças de vinte, vinte e poucos anos de tempo presente
séculos e séculos de pretensiosos aspirados futuros,
e nem uma única semana de conhecido passado.
Elas vêm dançando, sorrindo, desejosas de evolução,
experimentando cada qual com suas restrições
o doce e o azedo de cada matéria de matrícula.
Cabeças e mais cabeças rolando e, no rolar dos crânio
lambe-se o chão por onde passam! Te escafede, Deunisso!

Sai Deunisso e entra coro de alunos.

CORO
Os deuses da sabedoria com a nota nos presentearam,
e cá estamos desfrutando de um direito conquistado
com muitas horas de sentado e calculado estudo;
dias de calorosos ensaios, e anos de segregação cultural
– embora não façamos questão de lembrar disso.
Eis-nos cá, de pés coçando e mentes fervilhantes.
Somos poetas, somos divinos, mais abertos ao viço do novo
que o brasileiro ao produto estrangeiro. Mas também
sabemos quando reconhecer nossa ignorância
– embora não façamos questão de lembrar disso!

CORIFEU
Somos fortes, somos lindos, somos melhores,
e viemos explorar cada informação passada em curso
ao favor de nossa formação de artista.
Entra, Pentelho, e sê por nós tudo o que Aristóteles
já leu no homem: sábio, guerreiro, rico e comelão!

Entra Pentelho.

PENTELHO
Já fui católico não-praticante, já fui ateu fervoroso.
Embora cristão de livros e acreditanças,
Considero-me a evolução do pensamento.
Vinde a mim as criancinhas, pois eu adoro o riso delas.
Deixai também chegar os velhos, pois eles têm muito
que ouvir de minhas descobertas. Mas abre vias,
especialmente ao artista dos congados e maracatus,
pois a arte do tocar o povo – o dele –, sim, eu quero extrair!

CORO
Três vivas para nossa existência! Viva! Viva! Viva!

PALHAÇO, de fora
Morta!

Entra Palhaço, acompanhado de coro de fanfarra. Ele dança com seu pau, faz piruetas, aperta nariz de algumas pessoas do coro de alunos. O coro de Palhaço pára. Os dois coros se estranham, mas não se enfrentam.O coro do Palhaço se sente mais à vontade.

PENTELHO
Quem és tu, ser de engraçadas vestes e interessantes gestes,
e que no tirso com o qual honrados atores me recordo agindo
te apóias, como se ele fosse parte de seu corpo e eixo?
Ouve a mim e fala: de onde vem, como faz, e o por quê!

PALHAÇO
Eu sou o que sou, sou o que você vê.
A não ser que seja cego, daí posso escondê.
Mas ao se dirigir a mim, uma coisa vô dizê:
fala com língua de gente, pra qu'eu possa entendê.

Palhaço dança. Sua banda toca.

PENTELHO
E tua máscara vem dos gregos? De Bali?
Da Commedia Dell'Arte? Katakali?





PALHAÇO
Dos gregos num foi, pois complicado falo não!
Nem dessa tal comédia de arte, pois eu fiz de coração.
Mas na última tu acerta, e o motivo é de se rir:
na cultura da minha terra, se cata aqui e cata ali!

Palhaço dança. Sua banda toca.

PENTELHO
Você é muito engraçado, mas embaraçado fico,
pois zombas de meus conhecimentos. Já não sei se rio
ou se viro as costas pro mundo: apesar de tanto saber
e tanto aplauso por me ver, rendo-me aos seus passos
e desconfio de todos os livros. Só ainda não faço
pois não sei quem é você. E não é à máscara que refiro:
até para minha derrocada há que se haver porquê.

PALHAÇO
Me permite perguntar o seu nome a você?

PENTELHO
É Pentelho, de nosso povo um herói.

PALHAÇO
Com tal rebolado, no máximo um Elói! (Palhaço dança. Sua banda toca.)
Agora me dá licença, tenho mais pr'onde passar.
Nas casa de coronel eu logo vou me entrar.
Boa sorte na jornada, nessa vida de saber,
que pra explicar a minha bíblia, eu prefiro é comer!

Sai dançando com seu coro atrás.

PENTELHO
Que maneiras mais sujas, e no entam-tam-tam vivas!
Sinto o meu próprio agir diferente, mas não sei o que me move.
É preciso saber mais, ver mais e, um dia, talvez, dançar!
Sim, pois quem sabe se a agilidade do palhaço poderá trazer
habilidade de jogo para meus palcos iluminados?
Pegai vossas mudas, que vamos atrás de uma oficina!

PALHAÇO, de fora.
Sina, sina, sina!

PENTELHO
Esses nossos sapatos de couro, reboques e all-stares
nunca deram o brilho, o impulso e o conforto
que o chão in natura fornecera ao Palhaço que cá estivera.
Meus vinte anos de estudos para cá me trouxeram
e agora que começo a ver, preferia ter pra cá já vindo cedo.
Mas se cá viesse, teria eu um dia visto?
Teríamos nós contemplado e, depois, valorizado
aquilo que hoje caro pago, se nos estudos
não tivessem nossos pais nos mergulhado?
Ó vil via, que nos leva a negar a própria via!

CORO
Ser ou não sido, eis a questão! Será mais nobre
em nosso espírito sofrer o sarcasmo dos sábios
com que o Saber, expandido, nos destina,
ou insurgir-nos contra a própria família
que nos fez crescer em moralismos?
Saber, viver... não mais! Saber é se ter sem usar,
e viver é usar sem se ter, e isso ainda não nos é indolor.
Desgraçado pensamento que tudo quer e a tudo domina!

PENTELHO
É burra a forma como fui aculturado. E preconceituosa!
Mas não vejo como negar o meu passado, que de Passado
nada nunca teve. Foge-nos a convicção e,
no entanto, não se vê o porquê: só se sente!
E o invisível caçoa de nossos passos tortos
e de nossos tropeços. Será um tropeço ter nascido em berço
de cristãos teleaprisionados? Será um tropeço, mesmo
que não tenha sido dado com pernas próprias?

CORIFEU
Meu senhor, assim o destino quis a Édipo e sua laia!

PENTELHO
Saber que não se sabe é delicioso e honrado.
Mas saber e não dançar... ah, e próprio do pateta!

Entra Hermes, os mensageiro.

HERMES
Umbando se aproxima! Ou será um banto?
Sua massa é grande, e vem a navios! E vem estranho!

PENTELHO
Estranho como?

HERMES
É feio e belo, é estranho e familiar, e é separado e unido.
E vem de longe, que no tempo ainda mais longe é perto.
Há sangue e esperma, choros e risos, ais e uis, êis e ois.

PENTELHO
Conta mais!

HERMES
Não posso, pois é distante.

PENTELHO
Deixa-os vir!

HERMES
Então não serei mais hermético.

PENTELHO
Que seja! Vou lá eu então.

Sai Pentelho e, depois, Hermes.

CORO
Aproxima-se de nós um desfile muito bem “pontuado”.
Quanto à vivacidade das formas, exclamações.
Quanto à natureza que nos põe de pé atrás, interrogações.
Às tentativas nossas de imitá-los, ponto-e-vírgula.
Por fim, no auto-questionamento, reticências!

CORIFEU
Em suma, lança-se ao vento a pergunta:
Como se livrar de todo o pensamento crítico,
que em nós é mais enraizado que as próprias raízes
que pretendemos analisar, e que estão prestes a se apresentar
diante de nossos olhos curiosos e atemorizados?

CORO
Temor? O que vem lá, que tanto nos atrai e repele?

CORIFEU
É o souvenir negreiro!

Entra coro africano, no qual estão misturados jejes, nagôs e bantos. Eles carregam mastros com símbolos do mar, da serpente e da árvore. Dançam. Ora ajuntam energia, ora expandem. Nas danças, formam batalhões, linhas e rodas. Nas rodas, enquanto dançam ritmicamente com os pés, o coro negro reproduz os gestos de cada orixá: afiar espada, colher ervas, ondas do mar, grandes unhas, tomar banho no lago etc. Há representações de orixás e voduns. Entra Pentelho.

PENTELHO
O que vejo aqui senão aqueles que poderão me acalmar?
Confirmo as palavras de Hermes, e ainda digo mais:
percebo a força de tais danças, mas não consigo
abandonar a censura. Até posso aceitar tais expressões,
mas não consigo acreditar nos estados de transe.

PAI EUCLIDES, que é corifeu do coro africano.
Nós num têm frescura. Vem e dança com seu negro,
que é braço e bolas de sua própria história, que a Casa de Mina,
E os candomblés amigos, podem brincar de rituar sem ciúme.

PENTELHO
Eu vou com a pulga, pra ver se purga!

PAI EUCLIDES
Se ocê num crê, num purga, só pulga.
Esquece a cabeça e dança!...

Começam a dançar. Pentelho é desajeitado.

PENTELHO
Isso é jeje, orixá, fom ou Daomé?

PAI EUCLIDES?
Dá no mesmo!

PENTELHO
Ou será Nagô? Iorubá? Vodum?

PAI EUCLIDES
Ora, deixa de separar coisa da coisa,
que o negro se abraçou na sua matança,
tirando das brigas pela aceitação da igreja branca
o jeito de se acostumá com a religião de fora.

PENTELHO
Mas e esse pé? Como vai ali por trás e volta aqui pela frente?
Percebo que a pelve ondula, que o joelho meneia, que o quadril cicia!

PAI EUCLIDES
Não esquematiza, ora! Dança de uma vez!
Não tenta copiar, só vem com a gente.

PENTELHO
A mão assim, o cotovelo assado, o ombro, pescoço...

PAI EUCLIDES
Fordismo dos diabos! Olha o eixo!

PENTELHO
Socorro!

PAI EUCLIDES
“Eixo”, não: “Exu”. Bah, bah, bah! Vou pro terreiro,
que aqui não tem axé. Simbora, meu povo!

PENTELHO
Mas já vai? Ainda não assimilei os passos.

PAI EUCLIDES
E nem vai. Só se fosse grego, e bem pré-socrático,
você entenderia o que é viver sem separação.
Vida e morte, céu e terra, mente e corpo, Ying e Yang,
– seja lá o que você quiser chamar! – oscila, e varia
entre um e outro sem nunca se saber quando é quem.
Se você não souber disso, e não souber com o coração,
não tem faculdade que vai fazer você entender. Oxalá!

PENTELHO
Mas então só me resta a referência do olho?

PAI EUCLIDES
E é o que cabe a todos os desertores. Já diria Bacantes!
Vai prum convento, ou melhor: vai prum museu! Oxalá!

Sai com o coro negro, que ainda dança.

PENTELHO
Mas, veja! Foram-se, e eu – quer dizer, nós! – ficamos!
O corpo, o corpo no tempo-espaço, e agora o corpo
no tempo-espaço e sentido. Sentido! Silêncio!
Preencher-se de sentido, mas que sentido faz não saber?
Os princípios da ação, a voz, o canto, onde eu encaixo?
Eu não poderei ser o futuro inoxidável – que quer dizer brilhante –
se não tiver o manual que me indique onde que cada peça
se encaixa nesse mural de informações. Pai Euclides!
Fala pra mãe! Que tudo que a antena captar meu coração captura!
Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura!

Entra Deunisso numa máquinha.

DEUNISSO
Eu sou o todo, o passado, o futuro e o presente,
e venho aqui determinar a tragédia de sua vida.
Pentelho! Não viste, não aprendeste, e não te culpo.
No entanto, Édipo também não soubera, e ainda assim
coube a ele, e à sua raça, as desgraças de seus atos.
Tu és filho de outros desgraçados, que com a mágica
fizeram arma de fogo; que com lucro fizeram miséria;
que com arte fizeram status, e daí por diante você faz noção.
Tu és o rastro de ações que levaram-te a ser o que és.

PENTELHO
Mas e minha liberdade de escolha? Meu destino, por sinal,
já foi traçado ao nascer em berço de ocidentais urbanos?

DEUNISSO
Mais ou menos. És livre, mas, sem saber o que se é,
bem como perguntou a Esfinge ao mais famoso cego,
será devorado pela violência do Caos inalcançável.
Pois alteridade se trabalha com a experiência contínua,
não com as doses com a qual você se vê satisfeito:
“Olho uma vez, e já compreendo.” – Basta! Vai, vive sua vida.
Ou esquece disso, ou sê um inconformado em busca de si,
pois só assim serás grandioso como pensa um dia ser. (Sai.)

PENTELHO
Espera! Espera! Si é uma nota? Em dó maior?
Espera, que eu preciso anotar no meu caderno! Ei! (Sai, ao correr atrás dele.)

CORO
Entre quem e o quem, qual deve ser compreendido?
Aquele que é, ou aquele que quer tudo sê?
A educação nos fez famintos por fast-food
e nosso corpo agora só digere carne-coisa e temperos mil.
São porradas que fazem ver, mas o que se vê são sombras,
fantasmas de Hamlet, os pais assassinados pelos tios
que ambição queriam. Tios, esses, chamados Intolerância,
Irmãos do Kitsch, e de nomes que não se arrisca dizer.
A assepsia de uma cultura regrada – agora que tudo se vê
mas que ainda não se sente, ou que não se faz parte –
Não nos deixa deitar as pestanas do fazer artístico.  
A vista da superficialidade não nos deixa dormir profundo
e decepados deveríamos ser, para poder entrar de corpo e alma
nas danças que nossos antigos já faziam, sentiam, e sabiam.
Museu, sim! Vamos ao museu, pois é onde cabem
aqueles que souvenizam tudo que tocam. Midas avessos!
Alteridade! Os nagôs, bantos, jejes, viverão sem nós
e até nós sem eles. Mas quem será mais feliz?
Só os deuses dirão. (Coro sai.)

Silêncio. Entra Palhaço.

PALHAÇO
Antes se cantava musa, hoje se conta museu.
Se me perguntam da coisa, quem não sabe sou eu.
Gente que diz ser culta, mas que nada cultua,
se quer saber de uma coisa: saber se dá na rua!
Se me levam pra ver suas peças, eu respondo no ato:
é por nos ver como pobres, que pobres não vêm o teatro! (Sai.)

FIM.