20 de março de 2006

Paixão Paleolítica

__Prólogo — Arte e crença

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__Um grupo de arqueólogos penetrava na caverna e nas gravuras das paredes pintadas há milhões de anos com os rabiscos paleolíticos.

__Iluminavam as pinturas em busca de comprovações e descobertas.

__— O que pintavam?

__— Seus desejos.

__— Caçadas, alimento?

__— E proteção.

__— Por quê?

__— Era a crença.

__— Se pintassem...?

__— Seriam abençoados.

__— E haveria fartura?

__— Pela força do místico.

__Acreditavam encontrar provas de um povo antepassado, mas não foram apenas caçadas e ritos que enxergaram pelo clarão.

__Inesperavam por aquilo que viram.

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__Parte I — Vestígios prodígios

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Na luz da lanterna focados
À ordem a seguir dos rabiscos:
Homens no muro pintados
Venciam aos bichos ariscos

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Mas viram, os exploradores,
Que havia um desenho à parte:
Um par, em aura e em flores,
Unidos, a Vênus com Marte.

__

"Se os homens, com a fome doendo,
Pintavam, traçando em fartura
A carne, no místico crendo,
Que será esta estranha figura?"

__

"Parece que uma alma isolada
Pensou que, se havia magia,
Talvez pintado a amada
Um dia o desejo viria."

__

Como está nosso apaixonado?
Que fim teve seu caso oculto?
Um anjo alado?
Ou triste vulto?

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__Parte II — A invenção do mesmo

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A primavera com seus pássaros trazidos de volta com a brisa
Fez de cada lágrima uma nova chama que natural nascia
Quando o fogo alcançou o céu a sufocar flores que a terra pisa
Animais a pular se exaltaram com o calor que se consumia
Energia zero, finda a flama que secou as fontes, ilusão
Folhas forraram o leito de um homem partido e sem alento
Frieza d'alma recolhida à concha e feto, suma solidão
Descansa em paz à espera triste do seu auto julgamento
E pra curar tais dores!
Nasceram flores!
E pra esquentar o amor!
Veio o calor!
E pra queimar a alma!
Amarga calma!
E pra apagar o inferno!
O sono eterno!

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__— Fogo, metal, níquel, papel, barcos, carros, casas, ruas, prédios, povos, crenças, mitos, votos, pólis, força, ritos, luzes, redes, fones, linques.

__— Evolução inter?

__— Revolução intra?

__— Homo sapiens, o uga buga.

__— Homo sapiens, uga fuga.

__

__

Da Mãe está acima o ser dominante
Hegedomina, tal bicho pensante.
À caça fácil rimou com magia
Em seu palácio, tecnologia
Chefes monarcas, escravos plebeus
Provou ser o homem à imagem de deus.

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E as cartas, correios, serenatas, e-meios
Os quadros, os fados, as fotos, os fatos
Filmes comprados, discos gravados
Pelúcia, astúcias, dilemas, poemas
E flores pela internet.

__

À caça fácil rimou com magia
Em seu palácio, tecnologia
Potencializou-se à imagem de deus
Racionalizou-se, os desejos seus
E para o seu amor superou romeus
E para o seu vetor, tantos apogeus!

__

Que faria nosso apaixonado?
'costumou-se ao moderno e tudo?
Pierrot engajado?
Palhaço mudo?

__

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__Parte III — A tríplice de um tal filho pródigo

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__ Aqui embaixo, lembrando... o mito da caverna.

__— Que tem?

__— E se não existir caverna?

__— [...]

__— E se não houver superfície?

__

__

O homem cresceu, se multiplicou
E a concorrência também se alastrou
A sobressair, no rosto pintou a fuligem

__

Bumerangue liberdade, consciente bangue,
"Guerra de propriedade, e não de sangue!"
De tão racional, o homem voltou à origem

__

Na consciência opostos
Inconsciência, iguais
Os mesmos pressupostos
Selvagens animais

__

A lei do mais forte — ser grande ou a morte
A seleção natural — ser belo afinal
Adaptação ao meio — o esperto entreveio

__

Pra ser-me perene — passar o meu gene.

__

A mim eles se humilham!
— Da tríplice compartilham.
De inteligência tenho mais!
— Poder, sobreviver. Fatais.
Vim, especializado!
— Como meus outros animais.
Departamentalizado!
— Distintos, tão iguais.

__

Ao cético, acaso, ao romântico, destino
Milhares por dia cruzamos em rede
Àqueles é atraso, ser a estes, menino
Qual das pessoas é a pintada à parede?

__

Diga, "a fila anda em continuidade
E o que vale em vida é ser feliz"
Ainda que esta sua felicidade
Seja instinto de toda a matriz.

__

Que fará nosso apaixonado?
O desejo pintado em suma arte?
Amor trifiltrado?
Ou ser à parte?

__

__

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__Parte IV — A metrópole coração metrô

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__ Que fofo! Aqui, sem sinal. Mas ele ligou. A mensagem.

__— Sente sua falta. Já este homem, pré-artistórico, tinha a musa mais próxima.

__— Mas hoje, inevitável! Trabalho tão longe!

__— Inventamos para suprir nossas faltas. A tecnologia é uma bóia. O sinal, uma corda.

__— Vamos sair, por telefone, Quero te ver, por um e-mail... Drible à rotina, surpresa animação!

__— Mas beijos pela net, abraços por telefone, parabéns por orkut? Distante aproximação!

__

__

Mil maneiras de com outro falarmos
E com cada mil que na rua encontrarmos
Mantenha o tato, mantenha a visão
Paladar e o olfato, também a audição
E o sexto sentido ao caos se declina
Será que ao acaso a paixão se destina?

__

Não se vêem, virtualmente eles se falam
Teclas profundas, enquanto bocas se calam
Um saxofone triste, sou eu que descanso
Ganhar o seu fone é pra mim grande avanço.

__

Cruel plataforma aproxima pessoas;
Mas o coração se lamenta: a distância!
Muita energia, ou senão foi à toa;
E torcer que não seja uma mera fragrância.
As sintonias diferem, e destoam;
Fadado ao de novo, e mais redundância.
Pra uns, como luzes, as escolhas soam;
Outros nos beijam sem significância.

— A liberdade é encarada com vigilância.

__

Não depende da magia, só de si mesmo
Saudades de quando dava força pintar
A cidade aglomera numa abraço a esmo
E cada um sonha com mãos se cruzar

__

Vizinhos que não se falam na inter relação
— Dá licensa, aí vem o bonde!
Conheceu uma garota, numa outra estação.
— De tão perto, de tão longe.

__

Os veículos mostrarão que nós, ativos,
Não nos somos próximos, só estamos vivos.

__

Pintará nosso apaixonado
A pedir, sonhando em luz?
Lado a lado
Do que produz?

__

__

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__Parte V — Latente patente

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Largue o poema, foque o problema
Largue o poema, foque o problema
Largue o poema, foque o problema
Lema, ema, lema, ema...

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__"Faço, por este relatório, saber o Instituto das demais gravuras encontradas próximas à já registrada. O leão a caçar, e a leoa aguardar com os filhotes e protegê-los, com a garra, de hienas; o tubarãozinho a seguir o pai, que finge abandoná-lo, visando a independência de aprendizado; o pavão, que exuberantemente expõe suas plumas às fêmeas interessadas; e ao crepúsculo, inspiradas em cores, cantam cigarras aos ouvidos de parceiros sensíveis.

__Em grupos nadam os peixes, fogem da lança do homem; baleias se hospedam em baías quentes para abrigar seu parto; e depois somem, perfeita logística; cães selvagens domesticados, aprendendo ordens e gestos; e os mamutes, que despedem o velho que atrasa a organização construída."

__— De que então difere o homem, se o que fez além destes bichos foi matar à toa, dominar a proa, e castrar os instintos para instaurar um sistema de exclusão?

__— Como se os predadores já não lutassem para impedir a perda de um poder?

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__

Amor, um mero instinto
Da genética sócio-fraterna?
Ou será símbolo distinto
Perdido na velha caverna?

__

Como terá visto nosso apaixonado?
Ao sair, pro mundo, da sombra e tumultos?
Platão inspirado?
Ou cópia dos vultos?

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__Parte VI — Quando a fome aperta, a vergonha afrouxa

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__ Você, aqui, gosta do que faz?

__— ?

__— Podia ser diferente? Foi escolha sua? Foi resultado dos fatores?

__— Eu acho que sim.

__— Que gosta? Ser escolha? Que resulta?

__— Que se eu amasse, diria que é uma saída. Gostar mesmo, pintaria paredes.

__— No entanto...

__— Trabalho descobrindo crenças. E a Colombina.

__

__

O dia não existe das oito às seis
Entro num portal do tempo de uma vez
E saio dele o mesmo, só que indisposto
Talvez experiente, apenas mais um posto
Preciso viver sem sombra à minha costa
Assim o dia sem pensar que foi uma bosta
E que não serviu somente por dinheiro
Nem que eu cedi às ganâncias do puteiro
Grana é gana, organização, dominação
Ou até os meios, sim, mas a vontade
É a força que move a liberdade
Senão que importa ter os meios
Se não se enxerga os fins?
Do contrário, álcool sem freio
E coitados, meus rins!

__

__

__— Antes de irmos, quero fotos dos desenhos.

__— Pra quê? São só desenhos!

__— Porei num retrato de minha mesa.

__— Lembranças de um trabalho?

__— Razões para manter-me motivada.

__— O trabalho do solitário, perdido no tempo?

__

__

Ao tempo ninguém se explica,
Pois ele vem e pica,
E será mais uma história à altura
Mas deixada à pintura
Que durou profunda num momento
Mas perdeu-se em pensamento.

__

Como encarou nosso apaixonado?
Às forças cruéis que regem da fome?
Viveu sedado?
Morreu homem?

__

__

__

__Parte VII — A ilusão das águas

__

Quando acordara
E o tempo passara
Levantou-se e deixou o homem na cama a sonhar
Perdeu a hora
Um tac pra trás é um trem que lá vai a trotar.

__

Vinte minutos depois
Embarcou na estação um outro alguém
Este é o homem do acaso, do jogo e do além.

__

__

__Depois de conhecê-la, e ligado, e escrevê-la, e visto, e tê-la, magoou-se, mas sem odiá-la, passando o rancor, mas passado as horas, um mês às demoras, sem lê-la, sem tecê-la, sem seu olho aprofundar, naquela água penetrar, conformado com suas intenções pela tela, ao léu do acaso de encontrá-la, num desses metrôs da internet, e dizer um oi, ou uma frase que resuma o que se sente, pois mostrar lhe foi vetado, se um não quer, dois não dançam, fingindo estar suficiente, atuando, interpretando um outro que não se importa com sua saudade, com sua vida, com sua vontade, com sua ida, e por isso pinta na parede de sua caverna, pinta à sua volta, pinta a sua volta [...]

__

__

Quando encontra, o apaixonado em fossa
Um'água, seja gota, balde, mar ou fosso,
Pensa: poça?
Outro poço?

__

__

__

__Epílogo — A carta à garrafa, a garrafa ao mar

__

__[...] usando sua arte, sua tela, sua cela, seu papel, seu mausoléu, como sua caverna própria, escrevendo num plano, acreditando noutro, torce o homem, e arteia seu sonho, enaltece pidonho, pois daqui milhões de anos, entra alguém na sua casa, alguém, com curiosidade vasculhando, nos achados pré-históricos, recentes passados, lerá suas gravuras, as aventuras, saberá que um dia, tal homem preferiu a caverna, do que os mil rostos diários, vazios, crendo no abraço ser portal do tempo, e no beijo, o da eternidade.

__

__

O tempo que liga distantes planos
Um passo atrás, consente
Depois de tantos à frente
Telefono buscando tu
Ocupado, soa o eu
A carta que nunca vai
A ficha que não me cai
Ensaiando pra sempre atrás dos panos
O tempo que liga distantes planos

__

O homem pintava em parede por motivos nele crente
Lança ao mar a garrafa, e escrever não é diferente

__

Num vidro, boiando, em fome e bravo?
Pronto a esfregarem, sentir o trovejo?
Um gênio escravo?
Dos três desejos?

__

__

Em fim.

__

A lava encanta e espanta, pois, paleolítica? — Escava sentimentos.

19 de março de 2006

Gerúndio caduco.

A espera,

A cama pra sonhar com meus prazeres.
A cama pra lembrar dos afazeres.
A cama pra transar com meus dizeres.
A cama.


a fome,


Acordo com vazio de existência.
Acordo com vazio de resistência.
Acordo com vazio de desistência.
A corda.


o caos,


As forças que acumulo se esvaem.
As forças que acumulo se distraem.
As forças que acumulo se me traem.
Há forças.


o trabalho,


Cadeia pra ganhar o dia-a-dia.
Cadeia pra ganhar o que queria.
Cadeia pra esquecer da alegria.
Cadê? Ia!


o pensamento,


Eu ando por um campo negativo.
Eu ando por um campo relativo.
Eu ando por um campo sedativo.
Eu ando ando, endo, indo e úndio.


o pesadelo...


( )___ Anda, ah!
( )___Lenda, uh!
( )___ Linda, oh!
( )_Segunda, ih!
( )_____nda, eh?


...e a aurora.


Um dia essa vida vem, se cerra.
Um dia essa vida vem, se enterra.
Um dia outra vida vem à guerra.
Um dia.
_
_
_

A lava demora.

8 de março de 2006

A mulher e a gramática.

__Hoje, Dia Internacional da Mulher, e tem um e-mail circulando por aí que foi um empréstimo de inspiração minha para "gerar valor de marca" à empresa (Submarino). Senti-me no direito de publicar aqui, claro, então lá vai.

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__Talvez a palavra mais delicada de se definir na gramática seja "mulher".
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Substantivo? Talvez seja o mais correto. Mas é incompleto. Primeiro, porque mulher não se nasce feita: torna-se. Nasce em forma concreta, mas se completa em caráter, no abstrato, apenas com o decorrer da vida e de seus feitos.
__
E mulheres existem várias. Mas quando, de repente para alguém, passa a existir uma só, mulher deixa de ser plural para se tornar substantivo próprio, único. Vira mulher com M maiúsculo. Então, ela se torna referência, característica de comparação, e, por isso, até pode ser um adjetivo. E o mais poderoso.
__
E para ir além, é com um toque de interjeição — porque faz parte dela a emoção e o sentimento — que consegue ser tão necessária ao dia-a-dia, fazendo-se, por isso, mulher.
__
Substantivo concreto ou abstrato? Adjetivo ou interjeição? É melhor ficar só com "mulher" mesmo. Porque se conceitua em si e, pra falar a verdade, nenhuma classe ou palavra irá conseguir definir o ser que só uma mulher consegue entender. E na falta de definições, fica a homenagem a você, mulher, pelo seu dia. Parabéns.

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A lava de bisnaga e tela.

5 de março de 2006

O Casulo de Mármore

Prólogo — Uma História Conhecida

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__A história começa da mesma forma como naquela que conta a paixão que o artista sentiu por sua própria obra. A beleza é uma tremenda armadilha, se não se aprende a encantar e encarar Afrodite.

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Parte I — O Solo Etéreo

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Eterna ao tempo
Olhar generoso
A musa que à forma se petrificou.

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Sonhando ansioso
De amores crescendo
Sedento, o homem que a ela criou.

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O dia nasceu
A musa morreu
E a obra ainda viva a calar,

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Sedado ao venoso
Em nuvens de gozo
Ao mundo deixou de contar.

__

Nuvens não sustem a vida
Um dia, sustou.

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Parte II — Recluso À Concha

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Vieram seus amigos e chamaram pra sair
"Mulheres, das milhares, vais topar, é só partir"
Ouvindo ao umbigo, pensou antes de parir
As frases que respondem ao luar:

__

Eis desgraçado destino, que foi me criar o mais belo ser
Que um dia, podia encontrar, mas que nesta vida, só assim posso ter
À noite em caçadas, com cartas marcadas, não ouso a ela deixar
Fico sozinho, a chorar de tristeza, mas forças não terei por lá
Por ter esculpido um amor, que a mim não mutuará.

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Em solidão foi crescido
E em solidão irá
Conhecer esta dor
De calcinação
Pois o amor foi pra si
Representação.

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__

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__Muitas folhas dos mesmos ramos caíram, e diversas foram a vezes que o inverno as soterrou com seu gelo silencioso, para que depois viesse a aurora e enchesse de esperança o artista, que sonhava com uma fada encantada que tornaria seu fado justificado, animando a sua obra.

__Chorou muito por não ser viva, mas o tempo não esperou, e um dia, já envelhecido, acordou, e viu, horrorizado, a estátua, que, por acidente, ou causa desconhecida, havia tombado, e se partido em mil pedaços frágeis. Como aconteceria ao artista.

__

__

Parte III — Chuva Salgada

__

Desgraça maldita, esforço em vão!
Lágrima na areia, colheita do não!
Que faço agora, sem quem abraçar,
Sem onde apoiar-me pra mais me criar?

__

Quão frágil a obra
Que a paixão sustentara
Quão frágil a vida
Que à paixão procedera.

__

A modelo, já morta, não pode mais me nutrir
Morra, fada, que ao fado enfado tardou a vir!

__

Quão frágil a obra
Que a paixão sustentara
Quão frágil a vida
Que à paixão procedera.

__

__

Parte IV — Espelho Partido

__

Desesperado atou de grão em grão
Os cacos do que restou esparramados ao chão
Uniu, perfeitos, como antes, quase tão
Mas era quase, o suor em vão.

__

A face facetando buracos
Espelho quebrando em nacos
Fendas desenhando opacos
Coração e alma em cacos.

__

Sete anos de azar a compor
No espelho, um mosaico da dor
Todos anos de azar a compor
Um retrato, um mosaico da dor.

__

__

__De longe, ouviu alguém a suas exclamações, e este alguém logo foi ao seu socorro. Pois sabia aquela visita que a culpa, no fundo, tinha parte à sua travessura inconsciente.

__

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Parte V — A Criança Que Brinca

__

Compreendeu sua dor, sem no entanto poder consolar
O filho da musa, que sentira no artista o declive
Sabendo onde fora enterrada, não poderia flechar
Pois Eros só atinge aquele que ainda vive.

__

Sua vista é cinza, e não flore
Capta quem anda, quem cede seu ego
O alvo é quem inflama, colore
Pois, parado, o deus é mesmo cego.

__

Quão frágil a obra
Que a paixão sustentara
Quão frágil a vida
Que à paixão procedera.

__

__

Parte VI — Por Querer Lapidar, A Lápide.

__

Gelado foi ficando o desgraçado que não ria
Pés, mãos, até que o corpo, por fim, suspira
Jogado ao campo, onde despedaçado jazia
Seu corpo, que, já duro, à estátua se fundira.

__

Enterrou-o sozinho o filho de sua musa
E fizera de sua lápide os cacos da obra
Pra que dos restos da arte sinalizassem a recusa
Que o artista fizera, chamando, a tudo, de sobra.

__

Não deixou filho, compensarei aqui com uma a árvore
Pois também se quebrou sua obra, e eras tu o mármore.

__

__

Parte VII — O Remorso Da Paixão

__

__Um recado deixou o deus ao pé da muda da videira que plantou próximo ao mosaico, e serviu de epitáfio ao pálido criador.

__

Fui eu quem quebrou a estátua, pois a atingi com minha flecha
Fui eu a fada de teu fado, que, por loucura, assim desfecha
Tu, que tanto me louvaste, achei de uma chance merecedor
Mas não pude animar a tua obra, pois animado estaria tu em flor
Não te quis quebrá-la, mas não medi forças
Só quis que tivesse nela o amor de todas moças
Pra que parasse de chorar, pra que parasse de sofrer
E voltasse a falar, de mim, pra todos ver
E nutrir em ti, tu mesmo, em fonte.

__

E se um dia achares no direito de a mim vingar-te, serei honrado.
Mas só aceitarei a fúria, se matar-me em arte, a ti representado.

__

__

Parte VIII — A Compaixão Dos Mortos

__

A causa da tragédia fora descuido do criador?
— Por negligência deverá sofrer em eterna dor.

__

Ou fora o vento de Hermes o destruidor da escultura?
— Então uma mensagem não chegou à estrutura.

__

E se fora um animal selvagem que a derrubara faminto?
— Não seria digna de ser bela, por não vencer o instinto.

__

Quão frágil a obra
Que a paixão sustentara
Quão frágil a vida
Que à paixão procedera.

__

Homem sofrido, levanta e me ouve
Tu me criaste a mais linda que houve
E agradecer eu teria que também
Se não fosse um porém.

__

Tu és o último a supor-me fato perfeito
Visto que fora causa da queda ao seu leito
Entenda que crias, eu nasço e amém
Não me prive do além.

__

O mármore é minha forma, mas não a minha alma
Eu tenho tu em mim, mas não tenha a mim em tu como ferida
Minha alma tinha sua semente, sua flora, sua fauna
Eu voei, saí para a eternidade, e não entendeste que eu criara vida.

__

Parto no seu parto
Mas foi por ti, pai enciumado.
Parto, mas não aparto
Porque sou ti, deus de seu fado.

__

__

Parte IX — Não Se Captura Estrelas

__

__A alma da musa, visitado seu vetor, despediu-se, até quando os destinassem o tempo, mas sem antes deixar no céu uma mensagem.

__

Alçado o vôo, explodiu-se em mais mil pedaços
Espalhando-se por todas as terras seus estilhaços
E inclusive sob a face daquele que estava a chorar a véu
Mas já soluçante, contorcendo sua mão, apontando ao céu.

__

Quão frágil a obra
Que a paixão sustentara
Quão frágil a vida
Que à paixão procedera.

__

__

Epílogo ou Parte X — Casulo de Mármore

__

Dali se foi, voltou a dor
Trouxe a cruz, o choro e a luz
Mas levantou, alado em jus
Voar pra lá, pro seu amor
Que nada é senão criar
Que a viver, que respirar
O Exo rompeu, e a ele viu
Livre do corpo que o pariu
Pois tua maior obra é
Pois tua maior obra é
O choro e a luz

__

Que nada é senão criar
Que a viver, que respirar
O Exo rompeu, ele cresceu
Livre de quem o concebeu
E encantou, polinizou
E inspirou, ali cantou
E não temeu, e não tremeu
Pois tua maior obra é
És tu.

__

Pois tua maior obra é
És tu.

__

Mármore: rocha metamórfica
encontrada perto a regiões
de atividas vulcânicas.

A purga atrás da orelha.

__Purgatório. Fora o lado teológico ou pensamentodopovoilógico, significa: "purificação", "limpeza". Duvida? Vê no dicionário. Ou, então, leia um caso de.

__

__—...e por ter visto muita TV, vai sentir dor de cabeça durante todas as manhãs a partir de hoje! Ah não... pensando bem, você já não deve ter muita cabeça mesmo... Tá bom, você, por ter visto muita TV, vai ser obrigado a ler Ulisses em aramaico, latim, em português com a tradução de títulos de cinema brasileiros e em português com a tradução simultânea do Oscar! E por ter colado na escola, vai ser crucificado num lápis gigante, ficando a ponta logo na altura de sua cabeça, e terá que escrever vinte provas discursivas, sem consulta, com o lápis no qual estará crucificado! Agora, leve esse boleto alí naquela fila, meu filho, e aguarde na sala de espera. Próximo!

__— Endiabrada Majestade, o próximo a ser julgado dentre essas paredes de fogo já está pronto.

__— Pois não me faça perde tempo e mande-o logo entrar!

__— É que... chefe, este aqui já é conhecido nosso...

__— Hein? Quem vem lá?

__— E aí!

__— Ah, não, você de novo?

__— Cara, juro que dessa vez é sério.

__— Cala a boca e deixe meu capanga ler o que vem na sua súmula.

__— Infernal Majestade, aqui consta que nosso amigo presente e a ser julgado veio com os próprios pés que a mente lhe proporcionou, e que na realidade ele não está morto.

__— Calma, cara, eu posso explicar!

__— Puta merda, filho, quantas vezes eu já te falei que aqui só vem quem morre lite-ral-mente?

__— Mas foi quase isso!

__— Ora, moleque, você morreu, de novo, lite-ratura-mente. Tem diferença. Vou ter que castigar por ser burro, agora?

__— Mas eu morro! Olha esse caderno aqui, olha quanta lágrima tem! Mais que tinta! Tudo que sinto, escrevo, quero dizer e viver disso, que até que faço bem, mas, pô, isso aqui me faz sofrer! Eu já pedi umas três vezes pra me ressuscitar como uma pessoa que fale mais e escreva menos! Todo dia eu deixo de provar o vinho porque escrevo sobre a uva! Ou perco a noite porque fico pensando em como me expressar sobre a sensação que o pôr-do-sol me causa. Ou—

__— Ha, chefe, esse aí deve deixar a mulher dele bocejar na cama, porque em vez de ir lá com ela e dar uma foda, fica escrevendo sobre "a beleza do reflexo da lua na suas curvas generosas" a noite toda, ha ha!

__— Ha! E pior que é mesmo, senão ele não estaria aí, silencioso. Caralho, hein?, que vergonha de você! Por isso que eu odeio quando você vem pra cá, acaba desonrando esse antro de pecados. Ninguém nunca te disse da tríplice suprema? Águia, leão e touro? Ou mente, corpo e alma? (Não é respectivamente, porque esqueci, mas você entendeu, filho). Mas então. Porra, essa tríplice está aleijada em você!

__— E pior que eu sempre digo isso...

__— Pois então! É esse seu problema, seu idiota. É isso que te faz, cof cof, morrer! E estou te xingando porque você enoja este recinto, e quero que saia logo. Mas como eu temo que você volte em breve, então, tá, vou te dizer umas boas, pra ver se aprende.

__— Vai.

__— "Faça o que eu digo, não o que eu faço." – Essa frase tem tudo a ver com você. Mas o problema é que você é tão ridículo, que consegue ser enquadrado na frase clichê pelo seu sentido oposto, há ha! Você é um gênio, sabia? Porque, enquanto geralmente quem fala isso é aquele que comanda o socialmente aceitável, mas que age inaceitavelmente, você diz a todos o inadequado (e por isso tem tanta gente que diz, "Óooh!"), mas, há ha!, faz igual a um cordeirinho, socialmente enquadrado. Pior! Porque até a sociedade aceita, com bico, mas aceita, certas coisas que você não faz. Você é um cara que seria glorificado num monastério, quer saber. E que ironia, você, que há tempos atrás era contra tudo aquilo de religião, ouvia direto a música que fala "father, I want to kill you", e adorava essa metáfora do "matar o pai", ou o que te prende aos ensinamentos, e blá-blá-blá. Que ironia!

__— Uma parte de mim tem medo.

__— Medo? Se isso for medo, os gritos dos filmes de terror são miados! Você deveria tomar um banho de sangue, limpar esse mofo do seu corpo. Uma mente tão boa, um corpo tão magro e podre! Isso é falta de exercício.

__— Mas o que posso fazer então?, caralho, se minha vontade de arte é tão grande assim!? Pára com essa ironia de merda e me diz algo proveitoso!, que eu nunca mais volto a esta porra lugar.

__— Ui, que boca suja! Te toquei, é? Ma, isso, cospe pra cima. Seu tolo. Toma isso.

__— Mas o quê?!... uf!

__— Eu só dou conselho a quem tem cicatriz. E você nunca se arriscou, logo... vai ser pro seu próprio bem. Toma!

__— Agh!

__— Só falo com quem tem o olho roxo, o nariz escorrendo sangue, os dentes frouxos, o braço quebrado, a perna torcida, o estômago socado. Ah, seu revolucionário de internet, seu romântico virtual! Acha que sofre muito? Que tal agora? Tá bom ou quer mais?

__— ...pare...

__— Resposta errada! Toma!

__— Chefe, não acha que—

__— Calado! E você, toma essa, seu anjinho! Isso, limpe com seu sangue esse perfume de alma que fez feder meu inferno. "Limpe" se rastro limpo com suas vísceras!

__— ...pá...ra...

__— resposta errada! E dessa vez, nem teve pergunta! Vai tomar de novo!

__— ...

__— Majestade! Ele parece morto! Só que... lite-ral-mente. O que você fez, chefe?

__— Ora, você por acaso gostava dele?

__— Não, mas se ele vivo já me encheu o saco, imagina ele tendo que vir aqui de qualquer jeito, por estar realmente morto?

__— Calma, ele não está defunto. Ou está, boneca?

__— ... co... continue... porra.

__— Ah! Finalmente ele aprendeu. Ele não é tão burro assim. Vamos lá então. Me dá aqui esse caderninho limpinho. Isso. (Dói, umas porradas, né? He he.) Agora, dá aqui esse livro seu publicado. Vamos colocá-los na balança. Sabe que balança é essa? É a balança da alma. Vou comparar a sua realização com o que você deixou de fazer. Vamos ver... aqui... pronto. Ah, eu sabia! Veja como seu caderninho pesa muito mais que essa bíblia que você escreveu e publicou. Claro! Mil livros seus não valem o brilho de teu caderno. E eu sei muito bem que você entende o que eu quero te passar.

__— Não...

__— Oras. Me diga: como você escreve? O processo, da idéia ao finalizar, essas frescuras de escritor.

__— Eu... tenho a idéia; escrevo de qualquer jeito no caderno; daí, num outro dia, abro; leio; se ainda fizer sentido, eu começo a digitar; e vou lapidando; até chegar no que eu publico.

__— Exatamente. E quer saber? Essa é a grande metáfora da sua vida. Ou, como preferir, dessa sua morte. Morte imaginária.

__— ...

__— Você quer escrever a sua vida, não quer? Quer, mas! Reflete tanto, e demora tanto para sair de seu caderninho, que a perde! Esse seu caderninho é a extensão de sua mente. De sua memória. Você quer guardar o momento, mas para compartilhar com os outros você simplesmente não aceita a imperfeição! Quer que seja memorável, mas pensa tanto em como escrever, ou como viver, que acaba "morrendo". Sua vida é linda, acredite. Mas somente dentro da cela que é este seu caderno. Isso aí dá tantos anos de vida! Mas o que você tem de rascunho, tem de perdido. Aí, quando vem a lembrança, ou quando você abre de novo a porrra do seu rascunho, já não tem a energia daquele momento que o inspirou. Aí fica nesse saudosismo abstrato, saudades de não ter feito, só ter sentido. Você é um cara que tem muitos sentidos agudos. Exceto o tato. Ou con-tato, sacou, sacou?

__— A águia está mais forte que o touro e o leão juntos...

__— Isso. E, sinceramente, onde já se viu isso? Nem metaforicamente isso é aceito; já que, metaforicamente, a águia mais forte é você, e veja seu estado... “forte”.

__— O... obrigado...

__— Espere. Tem mais, tá pensando o quê? (Já disse que não quero que volte aqui tão cedo). A águia, preste atenção, a águia tem toda a atmosfera do mundo para aspirar. E o aspirar é a primeira fase da respiração, que oxigena o sangue. Sim, o sangue, que leva energia pro coração, e para as pernas. Suas pernas têm energia de sobra, mas estão explodindo. Ela espera demais o aval do cérebro, da águia, mas o pulsar é a cada segundo, e por isso , quando viu, a perna já tropeçou em si mesma. Isso não é harmonia. É por isso que você não se cansa. Você não se acaba. Você acumula energia que te implode, ou explode solitário, que por isso vira um vulcão (como você chama aquele sitezinho com textos, mesmo?), e aí sempre tem fôlego pra tudo, mas nunca fica ofegante. Potencialmente, você até que é foda. Mas (outro trocadilho, posso?). Potencialmente é foda, mas esse seu caderninho é só punhetinha. Só aspira, não expira, só aspira, não expira. Você não vai chegar lá assim. Seu... “aspirante”.

__— Putz.

__— É. Essa doeu em mim também. “Aspirante”...

__— Mas até que faz sentido.

__— Pronto, acabou a festa. Agora, suma daqui!

__— Cara... obrigado. Isso são lá verdades. Sumo daqui pra já.

__— Mas calma, eu quebrei sua perna, não vai tropeçar!

__— Não preciso dela. Não aqui, agora. Olhe.

__— Ah, sim. Você e suas asas de fênix imaginárias. Vai pro inferno. Que dizer, não!

__— He he. Adeus.

__— Quê?

__— Hã, hã? Sacou?

__— ...trocadilho maldito... Antes de ir, só mais uma coisa.

__— O quê?

__— Tudo isso que eu disse não serve só pro seu escrever, ok?

__— O que quer dizer?

__— Bom... É que me daria muito gosto te foder com meus castigos purgatórios, depois que você morrer de verdade. Mas!... apenas se isso aqui existisse e não fosse outra invenção sua, não é mesmo. Afinal, você já leu aquela sexta parte do terceiro capítulo de Crime e Castigo. O inferno não são só os outros. Enfim, você entendeu o que quero dizer.

__— Entendi. E... até um dia.

__— (Tomara que não.)

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__Todo o inferno está contido nesta única palavra: solidão. (Victor Hugo)

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__Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno. (Van Gogh)


A lava purga.

Amarsoquismo, quis-mo.

__O esquizofrênico, que acompanhava seus amigos por uma caminhada no campo, admirou o trilho de trem que cortava a paz gramínea como um batalhão de formigas operárias.

__— Puta que pariu, não me venha você com essa sua inspiração de novo!

__Um deles era tão racional, que acometia a esses lapsos passionais de seu amigo. Não entendia sua arte, fazer o quê.

__— Calma, dessa vez é de verdade!

__Se alguém já teve um amigo que nunca aprendia a matéria na qual reprovava, então saberá o tipo de problema que este aí suportava. Simplesmente teimava. E pronto, lá estava ele com sua prancheta, lápis e pincel, pronto para desenhar.

__— Vai, vamos esperar. Estamos progredindo, e este é artista.

__O bom de ter um amigo mais ponderado.

__— Mas ele vai matar a cena! Estou falando.

__— Ei, pintorzinho, estamos indo à frente. Vamos devagar, pra que depois que termine, corra atrás da gente, ó-quei?

__E foram.

__Ouviram um apito. O trem logo cruzaria o campo. Dali daquela altura, do morrinho, dava pra ver bem o trambolho de ferro avançando no plano, vindo dum horizonte ao outro. Mas, espere aí. O amigo esquizofrênico ainda estava lá, sob o trilho, sentado em sua banquetinha, pintando!

__— Cuidado, caralho!

__— Saí daí, seu louco!

__À toa. O pintorzinho não se moveu, e continuou a esfregar o pincel, o lápis, o nariz, a boca na tela. Transava com sua criação?

__— Ai, merda, eu falei que ele nunca aprende! Saí daí, porra!

__— (De novo não, de novo não...)

__O louco parou o que estava fazendo, mas voltou a bunda ao banquinho. Apenas ficou a fitar a tela riscada, enquanto os vagões se aproximavam cada vez mais. Pensando consigo, dizia: "Venha. Venha. Venha."

__O atropelamento foi fantástico. No morro, os amigos paralisaram com o "acidente"; estavam longe demais para voltar e salvá-lo. De lá, apenas acompanhavam as quicadas do corpo. Vinha o trem, avassalava-o, lançava-o com sua força e energia à frente, para logo em seguida trombar novamente, despedaçar cada osso do amigo, a ponto de matá-lo de tanta pancada. Só foi parar mesmo quando o trem decidiu mudar seu rumo, e se encher daquele moleque que não fazia nada para impedir sua morte, ou impedir sua derrota, ou nada para se locomover que não fosse à pancada, à força, ou seja, cansou de tocar o bundão. Fez sua curva, sumiu no vale; e enquanto o corpo do menino ficou à margem da mudança do caminho, despedaçado, estilhaçado, depressivo.

__Quando os amigos finalmente socorreram-no, perguntaram inconformados ao ofegante esquizofrênico no que foi que ele pensava enquanto era atropelado por aquele imenso substantivo abstrato, para que não o forçasse a mudar seu rumo, a sair do caminho, a salvar-se. Surpresos, ouviram a resposta:

__— "Sim! Sim! Sim!".


A lava interrogação.