26 de março de 2005

Pequenas empresas, abande negócios.

Ó, sim, personalidade. Está na moda administrar seu negócio: seu eu frente ao mundo. Qual é seu valor na bolsa? — Não estou falando daquela que é rodada.

Investimento a longo e curto prazo: felicidade e prazer. Se não retornar, você “aplicou na poupança”.

Quem faz minhas relações públicas: não é fetiche; e Herchcovitch é um dos mais famosos. Mas nada que o Mr. How-much-shirt resolva.

Os 4 P’s dos descolados: Papai Pagou Pra Presente. Empresa familiar é receita de sucesso.

Recursos Humanos: drogas. Movimenta milhões; paralisa noções; minhas felicitações, sem conclusões. Todo mundo feliz, que admirável mundo novo. Estou cansado de ouvir isso. Cadê minha garrafa?

Salários: eu pago você pra quê? Cadê o volume que eu pedi? Os clientes não estão satisfeitos. Você está despedido.

Modernização do mercado: desculpe, amigo, você já não rende os mesmos contatos. Será substituído por uma máquina conversível.

Marketing cultural: cinema cult, nova bossa, pagode na aldeia e Ouro Fino. Vendas cruzadas com cães de sangue azul.

Fordismo: se você quer prazer, muito prazer. Meu nome é igual-fazer.

B2B: tu deves, tu deves.

Prospecção: um trem lotado, sem ar e só carne. Ninguém cai, apoiado na fraqueza do outro.


— Grandes empresas, debande negócios.




Temos vagas e termos vagos.

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Vende-se lugar ao sol.
Exclusivo p/ classe alta.Tam. P, M e G, 2.0 16v
Tratar c/ deus (R$5/min. vestimenta obrigatória)
ou loja mais próxima (levar documentos de posse)

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Aluga-se felicidade.
Preços acima do mercado. Pagto. reajustado
conforme oscilações da bolsa dos valores.

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Seja um Jim Morrison deluxe.
Com seu Sedan roncador você vai onde quiser. Levá-la também.
Nosso slogan: "Viva poeticamente e deixe a poesia pros outros."

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Dois ângulos.

A seleção dependia de apenas um gol para que conquistasse a tão esperada vitória. O jogo estava parado no tempo e a torcida adversária vaiava; a aliada sofria em silêncio num estádio de quase cem mil pessoas. A bola, posicionada próximo no meio do campo, esperava com ansiedade para a bica anunciada. Do outro lado da tela, milhões acompanhavam indignados o jogador que entrava em campo, substituindo o tal famoso craque. Esse que entrava era eu. O silvo do apito, a corrida, o chute e o contorno da bola. Subiu no céu, fez a curva, em câmera lenta, rodando, rodando, e caiu em direção ao goleiro; um último desvio com o vento e ela entrava na quina do gol, fazendo rasante até na rede lateral, que só se mexeu depois que a redonda empurrou a costura da rede, balançando a teia branca e a teia de mãos unidas por todo o mundo. O autor do gol, estátua no campo, recebia os abraços e choros dos companheiros. E silenciosa era a expressão do adversário; que contemplava indignado a beleza fatal de tão certeiro chute.

Eu, nunca fui habilidoso nos esportes. Mas adormecido em meu inconsciente está a imagem dos golaços de videogame, das emoções de Copa do Mundo, dos capítulos de O Mundo da Lua, e talvez por isso, nos últimos dias eu tenho sonhado como todo moleque que joga bola no campinho do bairro. “Herói em campo”; “Chute certeiro dá título ao Brasil”; “Ele saiu da reserva e entrou pra história”; entre outras manchetes, que minhas extensões neuronais capturam como apelo de glória. — Mas ser tomado por tamanha discrepância nunca foi tão comum quanto agora. Quase diariamente eu imagino as mesmas cenas, as mesmas notícias, o mesmo chute. Mas, de acordo com o que eu conhecia de mim mesmo, elas não deveriam saltar com tanta freqüência.

Até antes disso, o desejo de ser o herói da nação, fazer o gol da vitória, destruir más expectativas, eram típicos de fases quando me encontrava cabisbaixo, sem auto-estima, sentindo a mediocridade correr em campo. Fazer O Gol era como tornar-me cavaleiro: alimentava o desejo de ser alguém diferente da realidade; ser um não-eu que estava muito além do que eu podia com meu mínimo esforço. O gol é o gozo típico do brasileiro. Fazer O Gol era como ser amado, ser admirado até pelas falhas, até pelas omissões. Fazer O Gol era o passaporte para viver ilusoriamente num mundo perfeito, onde tudo se ama em sua presença ilustre. — Mas, como estava dizendo, o sonho surgia quando estava em momentos depressivos; ultimamente, tenho estado depressivo? Pelo contrário: pessoas novas que conheço deram uma força ao sorriso espontâneo; o reconhecimento no trabalho motivou-me a ser mais produtivo; o sucesso recente de alguns amigos levantou-me para encarar com sede de louvor os trabalho que me arrastará por todo o ano; sendo assim, porque a imagem do Gol tem tornado cada vez mais presente, inclusive quando de olhos abertos?

Afinal, até pouco tempo, o meu “Gol” era publicar um livro que denunciasse por meio de romance a podridão de um povo. Depois, produzir um filme que colocasse os filmes “para fazer pensar” numa posição que a mídia de massa nunca dedicou; e eu ganharia o direito de ser eu mesmo com isso — afinal, a liberdade parcial é item de luxo de quem pode, não de quem quer. Como criador de um estilo artístico: eis o meu Gol. Mas nesses dias O Gol torna imagem literal: é a bola na rede, Brasil campeão. É um Gol mais fácil; depende da sorte também; não depende do talento, do esforço; um gol daquela distância tem a mão do vento, da chuteira, da distração do goleiro, da pressão atmosférica; tudo isso, muito mais do que o próprio pé. Um gol desse é, em conseqüência, dinheiro fácil, fama fácil, vida fácil. Será isso o que eu quero? Eu, além de todo mundo?

Eu estava no ônibus pensando no porquê de estar sonhando tanto, sonhando acordado. Imaginei: claro que é isso, eu tenho vinte anos e quero ter livre expressão, e quem consegue isso pela arte ou vem de berço, ou de QI, ou infelizmente terá que correr a vida toda atrás de seu diferenciado lugar na sociedade, e por isso eu devo, no âmago de meus desejos, querer tornar-me o autor do Gol para que eu, por exemplo, com a grana ganha por loteria montar uma editora, uma produtora, e assim tornar viável o que penso e sinto, mas que não falo, para um público que precisa abrir os olhos tanto quanto eu, e só com meus próprios recursos poderia publicar sem a interferência do dedo comercial; só pode ser isso; quem tem grana pode comprar o espaço nos cinemas e uma acessoria de imprensa e uma boa agência para manipular a mente do povo e fazê-lo comprar minha obra, e assim seria garantia do choque, da polêmica, do conflito e da guerra interior; isso é fazer o que quiser; um individualismo que só tornar-se-á suprido quando observar a água parada formar não apenas ondas para surfistas aproveitadores, mas tsunamis que destruam a fortaleza da moral; a força destrutiva de algo que não se pode pegar com as mãos: eis a suma do que temo ser cortado pelo varejo; essa mosca varejeira; O Gol é a ilusão da liberdade; e ter tudo que não tenho, vendo-me livre dessa missa domingueira chamada carreira.

Mas há contradição em imaginar que O Gol é o passo para a tal liberdade. Afinal, se no serviço eu conquistei certo espaço de opinião, se em casa eu pago contas, se o que sobra é destinado a um futuro carro, se eu dependo menos de carro de mãe para poder sair com quem eu quero, e se os poucos que me lêem projetam em seus elogios um certo sucesso, porque deveria tremer? Também conheço meu lado metódico, meu lado planejador, aquele que quer gozar de cada degrau, e que diz, sem eu reconhecer se veste capa vermelha ou asas e auréola, para não gastar toda a sensação de vitória em um só momento da vida; este lado chato também tem seu valor: ele diz para curtir cada momento de quase-chegando, em vez de apenas sonhar com o ainda-chegando. E, neutralizada a batalha de dois egos existentes, surge uma nova solução: a liberdade não se refere à idéia; refere-se ao corpo.

Faculdade; trabalho; consumo; todos são tentativas terapêuticas contra a incerteza; são termos de garantia; são esperanças. Investimentos em um mercado onde os juros estão cada vez mais injustos. Lá no Gol, eu reconhecia a liberdade do corpo, da física: a precisão do chute; o poder sair à noite às escondidas; ser o dono da situação. Será isso ser influente? Fluência é habilidade que, pelo menos oralmente, nunca dominei; mas lá, dar depoimentos era fácil como conversar com amigos; com mulheres, o chute era de pênalti. Dominar a técnica, a habilidade, a força, a beleza e etc. são formas de domínio do corpo; e para tal, é necessário investir no tempo. Tempo define o corpo, que define o sucesso; tempo é dinheiro num sistema onde o dinheiro é templo. Mas eu não sou dono do corpo, e talvez por isso eu pense em investir no tempo; Ó tempo, que nunca chega; essa previdência que para sempre é postergada; quando é que o terei para meu ego?

E lá no gramado eu não precisava sequer pensar nesse tempo; vinha e fazia. Sequer cantava o hino nacional. E não era por antinacionalismo; era mais, era menos: meu sentimento antigrupo vinha da minha noção de suficiência. Era um antigrupos; ou seja, eu seria chamado de antipersonalidade, justamente por não me prender à noção de personalidade que temos quando nas cadeias da razão. — Não era dono de nada; nem do campo, como as empresas do sistema econômico; nem da grana farfalhenta, pois assim eu compraria o juiz, como todo ser corrupto; e também, nem do tempo. Nem do tempo, pois em campo sonhado, uma vez me vi dominar o tempo – e, por conseguinte, o corpo e a liberdade. Os outros em campo estavam parados, estátuáticos, exceto pelos olhos que me buscavam insanos. Ah, mas quando me dei por isso, eu já estava impedido, muito à frente até da zaga conservadora. E, que merda! Se não fosse esse meu último olhar, essa preocupação com os outros de trás, eu teria alcançado a meta; ou, melhor, teria alcançado o céu, pois não teria objetivo enquanto desprendido do esquema tático. Foi por um segundo, e a meia-noite Cinderela desceu aos imóveis, e o juiz levantou o cartão verde; nem vermelho, nem amarelo. A bandeirinha levanta-se apontando para o errante, e pronto: espere mais uns dias, que a flâmula será artigo de comércio para os “rebeldes”.

E por também não ser dono do tempo, cá estou dando-me um intervalo. Eu, quando moleque, e até hoje, sempre optei por jogar sozinho. Eu treinava chutes no ângulo, direcionava os rasgo certeiros no ar, e tinha prazer naquilo. Mas em campo com um time, o desconforto de entrar na estratégia era motivo de ficar na reserva observando o jogo, que é como qualquer outro. E da mesma forma, recolho-me na reserva dos artistas, calado e sombrio, treinando chutes precisos para o dia que eu entrar em campo. Até agora eu só pus na trave, e na trave, e na trave; não há nem torcida pra gritar “uh!”. E de tanto tentar sem sorte, estou prestes a desistir da empreitada sem rumo; porque os outros jogadores parecem mais felizes sem a noção de liberdade, e de corpo, e de tempo. Sim! Encontrei a metáfora que arrasta o sonho ao cotidiano. Ah, mas essa imagem do Gol no ângulo ainda me persegue, e é ela a culpada da ansiedade adormecida. Uma hora eu surto, dou pancada e sou expulso à força. Até por escrever tudo isso, é como tirar um peso da consciência. Mas que merda, eu meu sinto como alguém que acertou a trave novamente.

Tenho medo da prorrogação.


5 de março de 2005

Papo-pop, Cu ou Buraco Negro.

Quem vê, quem lamenta, quem nota, quem vive, sente-se pego em flagrante quando o refletor surge e se acende, ascende, do meio da noite crua para atravessar todos os Pã-pãs, Fón-fóns, Bi-bis, Plin-plins, Sai-da-frentes, Preciso-do-relatório-até-amanhãs, Cri-cris, Nã-nãos, Din-dóns, Trim-trins e Din-dins, e cegar os olhos do condenado à percepção. É a lua cheia inspirando dois amigos, escondidos num boteco afastado da avenida.

— Sabe? Eu desconfiava do amor. – Sim, podem olhar vocês aí do lado, pois já superei a fase da vergonha em botar pra fora! – Então. Eu sempre desconfiei do amor. Até o de mãe, que achava perfeitamente explicado pela psicologia. Mas agora não, sabe? Agora eu sinto falta de algo incompreendido. Hoje eu quero essa desconfiança junto a mim! Antes, o meu maior tesão era sair à noite e catar mulher. Pra mim, ser homem era pegar o máximo que pudesse. Dava prazer saber que eu podia, que eu comia quando queria. Mas enjoei. Não de mulher, claro, mas disso. Dessa coisa rotineira. Não é verdade? Que até pegar mulher vira rotina? Não quero mais comer todas as mulheres do mundo, sabe? Será que elas pensam assim? Porque eu, pra mim, já tanto faz se pegar ou não.

— Da mesma forma que você vai pra sentir-se vivo na corrida pelo guerreiro, há uma ânsia de escrever, de botar pra fora. E se fazemos isso é porque precisamos, antes de tudo, exteriorizar os personagens que estão vivos dentro de nós. Eles querem ir à luta, e encontrar sua morte nas palavras ou na batalha é uma maneira de não se tornarem espíritos inacabados, vagando moribundos pelas sombras da consciência, e até inconsciência. Cada um é cavaleiro, nobre pelo que defende, e eles querem lutar. E se antes aquele garoto mirrado era alvo de gozação, (e não gozo), de vergonha, de repúdio diante dos mais fortes e mais belos, hoje ele retorna como a salvação de algo sem causa, uma civilização podre por dentro, pelo gene da percepção visível. Há algo dentro dessa caverna cerebral que nos salva, e esse algo é o incompreendido. Uns chamam de deus, outros de amor, outros ainda de... sentido da vida.

— Sim, sim, mas o foda é que a revolução feminina, que começou no século passado, está fodendo com todos os românticos. Tipo, agora que elas não são, nem podem, nem têm a hipótese, nem sonhando, de serem iguais às suas antecessoras, as donas de casa, pois agora elas querem ser tudo, querem ser chefas bem colocadas, acima dos homens, etc... agora querem ser vistas como independentes dos homens; querem ser mães independentes do homens e etc... e tanta neura em relação a nós está confundindo suas cabeças.

— A maior batalha já travada na humanidade foi entre aquilo que sabemos de nós mesmos, e aquilo que queremos ser sabidos pelos outros sobre nós. Contos de fadas, romances e batalhas em nome da liberdade, ou do tal amor, comovem nossos olhos, e talvez sentimentos, porque toca o que queremos como mundo glorioso. Mas o que temos fora de nós é nada senão uma feira, onde tudo está à venda, incluindo nossos destinos. E com a “humanização” feminina, o que restava de doce está perdendo o fio da origem. Porque o que nos comove foram exceções conquistadas com muita sorte e garra – mas todas foram exceções. E olha que muito do criado foi fruto desses personagens que, na mente do artista, são mais vivos que o próprio criador. Mas esperar pela exceção é exponencialmente um risco à solidão. E mesmo havendo quem se “heroize” por ela, ninguém hoje o quer. – Mas, ao mesmo tempo, essas lutas pelo que não se sabe são, de qualquer forma, indefinidas, sem razão, sem base estável num mundo onde há que se ter seu alqueire. Rainhas eram solitárias, mas talvez de caráter. E hoje são, basicamente, e basicamente, sustentadas pelo histórico social, quando não muito patriarcal. São de todos, pois devem a todos. Por isso, ainda que pelo tom de voz um cavaleiro se revele diante de uma donzela que esperava e não esperava pelo príncipe submisso, não é garantia que o discurso apaixonado e sincero seja garantia de sucesso. Contatos são saídas.

— Acham que uma declaração é símbolo de submissão. Por causa de alguns poucos babacas, a mídia faz o escarcéu. Daí essas revistas que são mais feministas do que femininas – e muita gente não sabe a real do feminismo – ficam avisando sobre os perigos de amar. Mas o lema agora é “não tropeça, que a fila anda.” Que absurdo! Até eu, que sempre fui cachorrão, acho injusto. E pior que é irônico, porque mulheres adoram os cachorros. Eles cortam fila, são VIP. Não existe fila.

— Engana-se aquele que imagina que todas mulheres, em tempos conhecidos somente pelas cortinas da História e pelos seletos contos de aventureiros, eram donzelas em busca do céu de matrimônio. A puta existia antes do rei. E talvez até essas mesmas tenham mais glória que as princesas, justamente por não morrerem em delírio. Desse ponto de vista, elas estão é corretas, e viva a liberdade corporal! Mas exceto por algumas matronas que conquistaram fama entre aqueles que não têm nem amor, nem sexo, as únicas que são motivos para perder noites sonhando são aquelas que dedicaram sentimentos. Pois liberdade física, os frutos gramíneos, qualquer animal tem. Mas a irônica vista, e o horizonte, e o sonho de quem vê de baixo, só tem aquele que consegue ir além dos desejos comuns.

— Mas a moda agora é dizer “tô nem aí”. Balela! É da boca pra fora! Está tudo da boca pra fora. O Amor anda nos becos. A vida – e digo amor, daqueles por que se morre, não os de conforto – a vida está na sombra das ilusões cotidianas. E sabe qual o pior? Estar só, mesmo assim, é sinal de fracasso. Mas digo estar só no sentido de não querer ninguém, e não como solteiros e solteiras como eu (como eu era), que no fundo querem provar que não são feios, que não são rejeitados, e que são queridos pelos pontos do Ibope – e por isso é que todo mundo é de todo mundo –, esses solteiros são é necessitados. Eles precisam disso! Eles se iludem porque não têm coragem de tomar a frente no dia-a-dia e, por obviedade, se não saem na balada, sentem-se fracassados. Sacou? Estar só, em casa, é fracasso. Estar acompanhado, em casa, também.

— "Tô nem aí". Estar ou não estar, aí. Eis a questão contemporânea. Mas o crânio que seguramos é o nosso próprio, se chegarmos ao abismo de ter que decidir entre isso.

— Mas claro que pensamos nisso! Porque antes do amor vem a proteção. Sabe daquela pirâmide das necessidades humanas? Na ordem, viria a fome, segurança, social, etc? Não lembro o resto... de qualquer jeito, temos medo de sentir-nos desprotegidos. Se não se morre de amor, é consolo. Se é por individualismo, então, pra que amar? Eu não encontro mulher que pense assim! Ah é?, A fila anda? Mas aí, quando acontece com elas, ó, eu que sou o culpado.

— Ha ha ha! Meu caro, é verdade: por causa de alguns bastardos, houve de se acontecer a revolução do pensamento que colocava a mulher em submissão. O Catolicismo, em sentido metafórico, imperou na cultura até dos não católicos, e isso é um processo natural do preso que vê uma fenda nas grades com o que lhe batiam. Abdica-se das aspirações supremas para ter direito ao respeito. É por isso que o maior conflito agora ecoa na mente das mulheres: ser moderna ou se deixar levar? Ou melhor: ser acima dessa questão? É possível ter amor, tendo afogado a noção de amor nos anseios sociais e materiais? A cultura forma o conceito, e todos têm pré-conceitos. Aqueles que forem criados sob essa nova geração ideológica só terão livre-arbítrio de verdade se estudasse o histórico de cada palavra desse diálogo, e lesse todos os livros queimados, escondidos, destruídos, e percorresse toda a nossa História para entender e, só assim, poder escolher. Se não, ele "escolherá livremente" de acordo com o que viu na escola tendenciosa, que é a sociedade. É como as plantas no futuro: uma vez destruído o solo, a água e o ar, e assim as raízes, as sementes desse sentimento virão do laboratório capitalista. O amor se vende, agora mais do que nunca. Na verdade sempre se vendeu. Mas a mídia apenas elevou à máxima potência.

— A humanidade terceirizou as relações. A marca que visto é meu “relações públicas”. O estilo que visto é a conversa. Se bem que eu também acho que sempre foi assim. Mas, enfim. Na balada, eu sempre seguia o lema de pouca conversa, muito ataque. Porque, meu, numa balada, só de a mina olhar pra você, ela já sabe se vai ou não te beijar. Sua única chance – você precisa estar enquadrado no grupo do meio, os “Será?” – a única chance então é se ela achar você “simpático”, ou “arrumadinho”, ou rico, e você ter alguma lábia para conversar. Mas de que adianta? Não dá pra conversar ouvindo música no talo. Odeio conversar em balada. Já pensou, escrever um poema e entregar dizendo pra ela ler? Será que cola?

— O pó de arroz sempre existiu para os mesmos motivos. É chato se produzir, sim. Mas somos animais, e como animais, temos no sangue esse instinto pelo além do que somos de verdade. Afinal, quem quer a verdade?

— E mesmo assim, o que me deixa triste é essa obsessão pela perfeição estética. Agora, todas as minas são iguais por fora. Eu sempre achei que os defeitos fossem o tempero da relação... tem gente que gosta de pimenta, tem gente que não suporta. Entende? Mas agora anunciaram que Sazon traz amor, e aí está: as garotas sazonadas, com o mesmo gosto, com a mesma cara. A diferença é o papo. Mas, como eu disse, se não for no dia-a-dia – elas ficam com medo de cara que chega normalmente, interrompendo sua rotina de quero-ser-tudo – se não for no dia-a-dia, não tem como saber se elas são elas de verdade. Talvez essa verdade seja única que eu queira de fato.

— Olha a ironia que nos sorri todos os dias: a ciência veio padronizar aqueles que querem ser diferenciados. Mas há vida nos esgotos, pois todos precisam se divertir. É claro que a ciência, nas mãos de quem está obstinado ao poder-que-supre-uma-falha, também restringe os pouco afortunados de berço. Pra variar, da nobreza aos escravos, a felicidade será anunciada como diferencial de castas. E quando a noção da felicidade parecer nivelada, criar-se-á outro sentido, para que a queda, esta cachoeira suja, continue com seu leito, sempre.

— Olha... eu já conheci uma modelo. Olhando para o pedestal, elas parecem ser o prêmio máximo para o homem. Ah, mas espere-a abrir a boca. Agora, essas modelos e capas de revista, pff, não me atraem mais. Sim, elas são bonitas, mas criei uma certa aversão à perfeição, sabe? Agora quero conhecer os defeitos de uma mulher. E como a balada, a falta de luz, a maquiagem e tudo mais vão contra o meu desejo, é por isso que agora só vou a boteco. A minha noção de felicidade tornou-se às avessas. Fazer o que se faz lá em cima, mas agora em baixo. Agora eu acredito até em destino, para acreditar que encontrarei alguém que curta um papo descompromissado, uma transa sem a nóia de bater marcas olímpicas, etc. Uma hora essa vida de “atleta”, sempre alcançando recordes, enche. E eu acho que eu só encontrarei o que procuro naqueles que não estiverem daquela forma corrompidos.

— Tudo que me resta desejar é boa sorte. Destino não é, em todo caso, nada além de sorte. Agora, se espírito existir tanto na morte quanto nas minhas palavras vivas – mais vivas do que eu, por sinal – então só restará esperar por ela, a morte, e descobrir o que há além da cortina que separa do palco da vida.

— Mas sabe o quê?... Falamos tanto disso que esquecemos de curtir o que não é humano e, portanto, o que é perfeito. Olhe para essa lua.

— É ela quem nos lambe e nos arrepiam os desejos.

— E sabe o que é perfeito? Não buscar perfeição.

— E já que você "tocou" no assunto de homem-mulher... o que vai fazer depois que acabar o assunto?

Eles falavam a mesma coisa em épocas diferentes. Mas os corpos atravessaram o tempo para encontrarem-se nus no deserto, onde morrem todas as conversas de águia.

— Depois que acabar o assunto, eu morrerei. Como assunto.

— Faz certo... é o silêncio necessário depois de cada gozo.

— Vamos.