22 de maio de 2008

Saudade

__— Queria dizer que sinto alguma coisa por você mas não sei dizer o que é.
__— O que é?
__— Não sei.
__— Então não deve ser importante.
__— É sim. Eu acho. Não achei. Pelo menos era.
__— Pule.
__— Já pulei, mas quero voltar.
__— Pule a volta.
__— Não… Mas que saco, eu sinto a ponta da língua mutilada. Cheguei muito perto, mas não consigo chegar lá. Como se chama essa sensação de que antes você sabia, e que não sabe mais, mas você percebe que não sabe mais algo que sabia, e tenta voltar a saber, mas em vão?
__— “Loucura.”
__— Não. É sério. Queria saber por que sinto essa sensação do negativo de uma foto, mas de um fato que aconteceu e que não se sente mais a presença, apenas a ausência?
__— “Loucura.”
__— É sério!
__— Loucura, hehe.
__— É sério. Um buraco negro me puxa toda hora, e só essa sensação, cujo nome estava na ponta da língua, ponta que foi cortada, poderia neutralizar.
__— Vai ver essa palavra deixou de existir. Os eleitos vivem mudando a língua da gente, vai ver foi alguma palavra que foi aposentada na última reforma ortográfica.
__— Será possível?
__— Seria bem possível.
__— É um absurdo isso que os eleitos fazem de nossa língua? Diga: você ama o governo?
__— O quê?
__— Você ama nossos políticos?
__— Não sei.
__— Ama ou não ama?
__— Não sei! Que diferença pode fazer? Todos amam. É possível não amar?
__— Não sei. Esse… não amar… qual o oposto de amar?
__— Sei lá eu. Por que me pegou pra tantas perguntas? Primeiro, essa palavra que você sente mas não sabe dizer o que é. Depois, amar e não amar. Pra quê tudo isso? Onde quer chegar?
__— Uma vez me perguntaram se eu amava o governo. Respondi que sim porque não sabia qual era o diferente de amar. Eu acho que deixamos de não-amar no mesmo dia que deixamos de saber o que se sente quando se sente algo que mais não está nos fazendo sentir.
__— Quê?!
__— É estranho. Vejo a palavra “feliz” em todos os cantos. Também vejo “democracia, democrático”. Mas o que é ser feliz? O que é ser democrata? “Ainda mais bonito”. “Em forma”. “Do povo”. “Moderno”. “Atual”. “Sucesso”. “Bem-estar”. “Orgasmo”. Tudo é feliz, democrático, ainda mais bonito, ainda mais em forma, moderno, do povo e por aí vai. Absolutamente tudo, tudo, tudo! Mas o que é o contrário disso? E, afinal de contas, porque tudo tem que ser escrito assim, feliz e democrático?
__— Como assim, “tem que ser assim”? Como viveremos em sociedade se não formos felizes e democráticos?
__— Mas o que seria do mundo se não fosse a felicidade e a democracia?
__— Não seríamos felizes e democráticos!
__— Mas o que representa não ser feliz e democrático?!
__— É o contrário do que somos!
__— E o que é o contrário do que somos?!
__— E eu que sei?! Sempre fui feliz e democrático, como vou saber?
__— Se você sempre foi, como sabe que é feliz e democrático, ou o contrário?
__— Todos me dizem, oras.
__— Mas deve haver algum motivo.
__— Deve ser pelo mesmo motivo que todos os humanos têm dois olhos. É natural. Não ser feliz é contra a natureza. Não ser democrático é contra a natureza. Não amar é contra a natureza. Todos os seres humanos chegaram a nossa era graças a isso, seleção natural dos felizes, seleção natural pela democracia.
__— E como seria o… não-isso?
__— Seria um inferno. Seríamos animais.
__— Mas os animais não são da natureza?
__— Chega!
__— Tá… desculpe.
__— Tudo bem.
__— Só não me conformo.
__— Com o quê?
__— Não saber algo que parece estar na ponta da língua.
__— É porque você não deve saber, bolas. É como se fosse… de javù. Sabe? Aquela sensação de viver algo que sentimos que já foi vivido antes? É tudo uma confusão do cérebro, foi provado nos laboratórios.
__— Acho que a sensação que eu sinto é o contrário de de javù. Uma sensação de não viver mais algo que já sentimos ou vivemos outrora.
__— Confuso. Você pensa demais.
__— Enfim. Vou ficar devendo essa palavra.
__— Pode ficar com ela.
__— Não, não a tenho.
__— Mesmo assim. Faço questão.
__— Mas essa coisa não se sente sozinho. Quer dizer… eu acho. Era alguma coisa por alguém, ou coisa. Enfim. Já não sei o que é. O que essa sensação significa, hoje eu sinto isso por ela. É como uma “meta…”
__— Metalinguagem.
__— Isso. Escrever sobre escrever. Sentir um sentimento que se sente pelo sentimento sentido… Meu bisavô tinha palavras cruzadas. Ele sabia de tudo. Ele tinha aponta da língua. Hoje nem existem mais. E minhas palavras não se cruzam.
__— Temos imagens.
__— É verdade.
__
__