20 de março de 2006

Paixão Paleolítica

__Prólogo — Arte e crença

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__Um grupo de arqueólogos penetrava na caverna e nas gravuras das paredes pintadas há milhões de anos com os rabiscos paleolíticos.

__Iluminavam as pinturas em busca de comprovações e descobertas.

__— O que pintavam?

__— Seus desejos.

__— Caçadas, alimento?

__— E proteção.

__— Por quê?

__— Era a crença.

__— Se pintassem...?

__— Seriam abençoados.

__— E haveria fartura?

__— Pela força do místico.

__Acreditavam encontrar provas de um povo antepassado, mas não foram apenas caçadas e ritos que enxergaram pelo clarão.

__Inesperavam por aquilo que viram.

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__Parte I — Vestígios prodígios

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Na luz da lanterna focados
À ordem a seguir dos rabiscos:
Homens no muro pintados
Venciam aos bichos ariscos

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Mas viram, os exploradores,
Que havia um desenho à parte:
Um par, em aura e em flores,
Unidos, a Vênus com Marte.

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"Se os homens, com a fome doendo,
Pintavam, traçando em fartura
A carne, no místico crendo,
Que será esta estranha figura?"

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"Parece que uma alma isolada
Pensou que, se havia magia,
Talvez pintado a amada
Um dia o desejo viria."

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Como está nosso apaixonado?
Que fim teve seu caso oculto?
Um anjo alado?
Ou triste vulto?

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__Parte II — A invenção do mesmo

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A primavera com seus pássaros trazidos de volta com a brisa
Fez de cada lágrima uma nova chama que natural nascia
Quando o fogo alcançou o céu a sufocar flores que a terra pisa
Animais a pular se exaltaram com o calor que se consumia
Energia zero, finda a flama que secou as fontes, ilusão
Folhas forraram o leito de um homem partido e sem alento
Frieza d'alma recolhida à concha e feto, suma solidão
Descansa em paz à espera triste do seu auto julgamento
E pra curar tais dores!
Nasceram flores!
E pra esquentar o amor!
Veio o calor!
E pra queimar a alma!
Amarga calma!
E pra apagar o inferno!
O sono eterno!

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__— Fogo, metal, níquel, papel, barcos, carros, casas, ruas, prédios, povos, crenças, mitos, votos, pólis, força, ritos, luzes, redes, fones, linques.

__— Evolução inter?

__— Revolução intra?

__— Homo sapiens, o uga buga.

__— Homo sapiens, uga fuga.

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Da Mãe está acima o ser dominante
Hegedomina, tal bicho pensante.
À caça fácil rimou com magia
Em seu palácio, tecnologia
Chefes monarcas, escravos plebeus
Provou ser o homem à imagem de deus.

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E as cartas, correios, serenatas, e-meios
Os quadros, os fados, as fotos, os fatos
Filmes comprados, discos gravados
Pelúcia, astúcias, dilemas, poemas
E flores pela internet.

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À caça fácil rimou com magia
Em seu palácio, tecnologia
Potencializou-se à imagem de deus
Racionalizou-se, os desejos seus
E para o seu amor superou romeus
E para o seu vetor, tantos apogeus!

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Que faria nosso apaixonado?
'costumou-se ao moderno e tudo?
Pierrot engajado?
Palhaço mudo?

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__Parte III — A tríplice de um tal filho pródigo

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__ Aqui embaixo, lembrando... o mito da caverna.

__— Que tem?

__— E se não existir caverna?

__— [...]

__— E se não houver superfície?

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O homem cresceu, se multiplicou
E a concorrência também se alastrou
A sobressair, no rosto pintou a fuligem

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Bumerangue liberdade, consciente bangue,
"Guerra de propriedade, e não de sangue!"
De tão racional, o homem voltou à origem

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Na consciência opostos
Inconsciência, iguais
Os mesmos pressupostos
Selvagens animais

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A lei do mais forte — ser grande ou a morte
A seleção natural — ser belo afinal
Adaptação ao meio — o esperto entreveio

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Pra ser-me perene — passar o meu gene.

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A mim eles se humilham!
— Da tríplice compartilham.
De inteligência tenho mais!
— Poder, sobreviver. Fatais.
Vim, especializado!
— Como meus outros animais.
Departamentalizado!
— Distintos, tão iguais.

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Ao cético, acaso, ao romântico, destino
Milhares por dia cruzamos em rede
Àqueles é atraso, ser a estes, menino
Qual das pessoas é a pintada à parede?

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Diga, "a fila anda em continuidade
E o que vale em vida é ser feliz"
Ainda que esta sua felicidade
Seja instinto de toda a matriz.

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Que fará nosso apaixonado?
O desejo pintado em suma arte?
Amor trifiltrado?
Ou ser à parte?

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__Parte IV — A metrópole coração metrô

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__ Que fofo! Aqui, sem sinal. Mas ele ligou. A mensagem.

__— Sente sua falta. Já este homem, pré-artistórico, tinha a musa mais próxima.

__— Mas hoje, inevitável! Trabalho tão longe!

__— Inventamos para suprir nossas faltas. A tecnologia é uma bóia. O sinal, uma corda.

__— Vamos sair, por telefone, Quero te ver, por um e-mail... Drible à rotina, surpresa animação!

__— Mas beijos pela net, abraços por telefone, parabéns por orkut? Distante aproximação!

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Mil maneiras de com outro falarmos
E com cada mil que na rua encontrarmos
Mantenha o tato, mantenha a visão
Paladar e o olfato, também a audição
E o sexto sentido ao caos se declina
Será que ao acaso a paixão se destina?

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Não se vêem, virtualmente eles se falam
Teclas profundas, enquanto bocas se calam
Um saxofone triste, sou eu que descanso
Ganhar o seu fone é pra mim grande avanço.

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Cruel plataforma aproxima pessoas;
Mas o coração se lamenta: a distância!
Muita energia, ou senão foi à toa;
E torcer que não seja uma mera fragrância.
As sintonias diferem, e destoam;
Fadado ao de novo, e mais redundância.
Pra uns, como luzes, as escolhas soam;
Outros nos beijam sem significância.

— A liberdade é encarada com vigilância.

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Não depende da magia, só de si mesmo
Saudades de quando dava força pintar
A cidade aglomera numa abraço a esmo
E cada um sonha com mãos se cruzar

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Vizinhos que não se falam na inter relação
— Dá licensa, aí vem o bonde!
Conheceu uma garota, numa outra estação.
— De tão perto, de tão longe.

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Os veículos mostrarão que nós, ativos,
Não nos somos próximos, só estamos vivos.

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Pintará nosso apaixonado
A pedir, sonhando em luz?
Lado a lado
Do que produz?

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__Parte V — Latente patente

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Largue o poema, foque o problema
Largue o poema, foque o problema
Largue o poema, foque o problema
Lema, ema, lema, ema...

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__"Faço, por este relatório, saber o Instituto das demais gravuras encontradas próximas à já registrada. O leão a caçar, e a leoa aguardar com os filhotes e protegê-los, com a garra, de hienas; o tubarãozinho a seguir o pai, que finge abandoná-lo, visando a independência de aprendizado; o pavão, que exuberantemente expõe suas plumas às fêmeas interessadas; e ao crepúsculo, inspiradas em cores, cantam cigarras aos ouvidos de parceiros sensíveis.

__Em grupos nadam os peixes, fogem da lança do homem; baleias se hospedam em baías quentes para abrigar seu parto; e depois somem, perfeita logística; cães selvagens domesticados, aprendendo ordens e gestos; e os mamutes, que despedem o velho que atrasa a organização construída."

__— De que então difere o homem, se o que fez além destes bichos foi matar à toa, dominar a proa, e castrar os instintos para instaurar um sistema de exclusão?

__— Como se os predadores já não lutassem para impedir a perda de um poder?

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Amor, um mero instinto
Da genética sócio-fraterna?
Ou será símbolo distinto
Perdido na velha caverna?

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Como terá visto nosso apaixonado?
Ao sair, pro mundo, da sombra e tumultos?
Platão inspirado?
Ou cópia dos vultos?

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__Parte VI — Quando a fome aperta, a vergonha afrouxa

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__ Você, aqui, gosta do que faz?

__— ?

__— Podia ser diferente? Foi escolha sua? Foi resultado dos fatores?

__— Eu acho que sim.

__— Que gosta? Ser escolha? Que resulta?

__— Que se eu amasse, diria que é uma saída. Gostar mesmo, pintaria paredes.

__— No entanto...

__— Trabalho descobrindo crenças. E a Colombina.

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O dia não existe das oito às seis
Entro num portal do tempo de uma vez
E saio dele o mesmo, só que indisposto
Talvez experiente, apenas mais um posto
Preciso viver sem sombra à minha costa
Assim o dia sem pensar que foi uma bosta
E que não serviu somente por dinheiro
Nem que eu cedi às ganâncias do puteiro
Grana é gana, organização, dominação
Ou até os meios, sim, mas a vontade
É a força que move a liberdade
Senão que importa ter os meios
Se não se enxerga os fins?
Do contrário, álcool sem freio
E coitados, meus rins!

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__— Antes de irmos, quero fotos dos desenhos.

__— Pra quê? São só desenhos!

__— Porei num retrato de minha mesa.

__— Lembranças de um trabalho?

__— Razões para manter-me motivada.

__— O trabalho do solitário, perdido no tempo?

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Ao tempo ninguém se explica,
Pois ele vem e pica,
E será mais uma história à altura
Mas deixada à pintura
Que durou profunda num momento
Mas perdeu-se em pensamento.

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Como encarou nosso apaixonado?
Às forças cruéis que regem da fome?
Viveu sedado?
Morreu homem?

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__Parte VII — A ilusão das águas

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Quando acordara
E o tempo passara
Levantou-se e deixou o homem na cama a sonhar
Perdeu a hora
Um tac pra trás é um trem que lá vai a trotar.

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Vinte minutos depois
Embarcou na estação um outro alguém
Este é o homem do acaso, do jogo e do além.

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__Depois de conhecê-la, e ligado, e escrevê-la, e visto, e tê-la, magoou-se, mas sem odiá-la, passando o rancor, mas passado as horas, um mês às demoras, sem lê-la, sem tecê-la, sem seu olho aprofundar, naquela água penetrar, conformado com suas intenções pela tela, ao léu do acaso de encontrá-la, num desses metrôs da internet, e dizer um oi, ou uma frase que resuma o que se sente, pois mostrar lhe foi vetado, se um não quer, dois não dançam, fingindo estar suficiente, atuando, interpretando um outro que não se importa com sua saudade, com sua vida, com sua vontade, com sua ida, e por isso pinta na parede de sua caverna, pinta à sua volta, pinta a sua volta [...]

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Quando encontra, o apaixonado em fossa
Um'água, seja gota, balde, mar ou fosso,
Pensa: poça?
Outro poço?

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__Epílogo — A carta à garrafa, a garrafa ao mar

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__[...] usando sua arte, sua tela, sua cela, seu papel, seu mausoléu, como sua caverna própria, escrevendo num plano, acreditando noutro, torce o homem, e arteia seu sonho, enaltece pidonho, pois daqui milhões de anos, entra alguém na sua casa, alguém, com curiosidade vasculhando, nos achados pré-históricos, recentes passados, lerá suas gravuras, as aventuras, saberá que um dia, tal homem preferiu a caverna, do que os mil rostos diários, vazios, crendo no abraço ser portal do tempo, e no beijo, o da eternidade.

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O tempo que liga distantes planos
Um passo atrás, consente
Depois de tantos à frente
Telefono buscando tu
Ocupado, soa o eu
A carta que nunca vai
A ficha que não me cai
Ensaiando pra sempre atrás dos panos
O tempo que liga distantes planos

__

O homem pintava em parede por motivos nele crente
Lança ao mar a garrafa, e escrever não é diferente

__

Num vidro, boiando, em fome e bravo?
Pronto a esfregarem, sentir o trovejo?
Um gênio escravo?
Dos três desejos?

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Em fim.

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A lava encanta e espanta, pois, paleolítica? — Escava sentimentos.

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