5 de março de 2006

A purga atrás da orelha.

__Purgatório. Fora o lado teológico ou pensamentodopovoilógico, significa: "purificação", "limpeza". Duvida? Vê no dicionário. Ou, então, leia um caso de.

__

__—...e por ter visto muita TV, vai sentir dor de cabeça durante todas as manhãs a partir de hoje! Ah não... pensando bem, você já não deve ter muita cabeça mesmo... Tá bom, você, por ter visto muita TV, vai ser obrigado a ler Ulisses em aramaico, latim, em português com a tradução de títulos de cinema brasileiros e em português com a tradução simultânea do Oscar! E por ter colado na escola, vai ser crucificado num lápis gigante, ficando a ponta logo na altura de sua cabeça, e terá que escrever vinte provas discursivas, sem consulta, com o lápis no qual estará crucificado! Agora, leve esse boleto alí naquela fila, meu filho, e aguarde na sala de espera. Próximo!

__— Endiabrada Majestade, o próximo a ser julgado dentre essas paredes de fogo já está pronto.

__— Pois não me faça perde tempo e mande-o logo entrar!

__— É que... chefe, este aqui já é conhecido nosso...

__— Hein? Quem vem lá?

__— E aí!

__— Ah, não, você de novo?

__— Cara, juro que dessa vez é sério.

__— Cala a boca e deixe meu capanga ler o que vem na sua súmula.

__— Infernal Majestade, aqui consta que nosso amigo presente e a ser julgado veio com os próprios pés que a mente lhe proporcionou, e que na realidade ele não está morto.

__— Calma, cara, eu posso explicar!

__— Puta merda, filho, quantas vezes eu já te falei que aqui só vem quem morre lite-ral-mente?

__— Mas foi quase isso!

__— Ora, moleque, você morreu, de novo, lite-ratura-mente. Tem diferença. Vou ter que castigar por ser burro, agora?

__— Mas eu morro! Olha esse caderno aqui, olha quanta lágrima tem! Mais que tinta! Tudo que sinto, escrevo, quero dizer e viver disso, que até que faço bem, mas, pô, isso aqui me faz sofrer! Eu já pedi umas três vezes pra me ressuscitar como uma pessoa que fale mais e escreva menos! Todo dia eu deixo de provar o vinho porque escrevo sobre a uva! Ou perco a noite porque fico pensando em como me expressar sobre a sensação que o pôr-do-sol me causa. Ou—

__— Ha, chefe, esse aí deve deixar a mulher dele bocejar na cama, porque em vez de ir lá com ela e dar uma foda, fica escrevendo sobre "a beleza do reflexo da lua na suas curvas generosas" a noite toda, ha ha!

__— Ha! E pior que é mesmo, senão ele não estaria aí, silencioso. Caralho, hein?, que vergonha de você! Por isso que eu odeio quando você vem pra cá, acaba desonrando esse antro de pecados. Ninguém nunca te disse da tríplice suprema? Águia, leão e touro? Ou mente, corpo e alma? (Não é respectivamente, porque esqueci, mas você entendeu, filho). Mas então. Porra, essa tríplice está aleijada em você!

__— E pior que eu sempre digo isso...

__— Pois então! É esse seu problema, seu idiota. É isso que te faz, cof cof, morrer! E estou te xingando porque você enoja este recinto, e quero que saia logo. Mas como eu temo que você volte em breve, então, tá, vou te dizer umas boas, pra ver se aprende.

__— Vai.

__— "Faça o que eu digo, não o que eu faço." – Essa frase tem tudo a ver com você. Mas o problema é que você é tão ridículo, que consegue ser enquadrado na frase clichê pelo seu sentido oposto, há ha! Você é um gênio, sabia? Porque, enquanto geralmente quem fala isso é aquele que comanda o socialmente aceitável, mas que age inaceitavelmente, você diz a todos o inadequado (e por isso tem tanta gente que diz, "Óooh!"), mas, há ha!, faz igual a um cordeirinho, socialmente enquadrado. Pior! Porque até a sociedade aceita, com bico, mas aceita, certas coisas que você não faz. Você é um cara que seria glorificado num monastério, quer saber. E que ironia, você, que há tempos atrás era contra tudo aquilo de religião, ouvia direto a música que fala "father, I want to kill you", e adorava essa metáfora do "matar o pai", ou o que te prende aos ensinamentos, e blá-blá-blá. Que ironia!

__— Uma parte de mim tem medo.

__— Medo? Se isso for medo, os gritos dos filmes de terror são miados! Você deveria tomar um banho de sangue, limpar esse mofo do seu corpo. Uma mente tão boa, um corpo tão magro e podre! Isso é falta de exercício.

__— Mas o que posso fazer então?, caralho, se minha vontade de arte é tão grande assim!? Pára com essa ironia de merda e me diz algo proveitoso!, que eu nunca mais volto a esta porra lugar.

__— Ui, que boca suja! Te toquei, é? Ma, isso, cospe pra cima. Seu tolo. Toma isso.

__— Mas o quê?!... uf!

__— Eu só dou conselho a quem tem cicatriz. E você nunca se arriscou, logo... vai ser pro seu próprio bem. Toma!

__— Agh!

__— Só falo com quem tem o olho roxo, o nariz escorrendo sangue, os dentes frouxos, o braço quebrado, a perna torcida, o estômago socado. Ah, seu revolucionário de internet, seu romântico virtual! Acha que sofre muito? Que tal agora? Tá bom ou quer mais?

__— ...pare...

__— Resposta errada! Toma!

__— Chefe, não acha que—

__— Calado! E você, toma essa, seu anjinho! Isso, limpe com seu sangue esse perfume de alma que fez feder meu inferno. "Limpe" se rastro limpo com suas vísceras!

__— ...pá...ra...

__— resposta errada! E dessa vez, nem teve pergunta! Vai tomar de novo!

__— ...

__— Majestade! Ele parece morto! Só que... lite-ral-mente. O que você fez, chefe?

__— Ora, você por acaso gostava dele?

__— Não, mas se ele vivo já me encheu o saco, imagina ele tendo que vir aqui de qualquer jeito, por estar realmente morto?

__— Calma, ele não está defunto. Ou está, boneca?

__— ... co... continue... porra.

__— Ah! Finalmente ele aprendeu. Ele não é tão burro assim. Vamos lá então. Me dá aqui esse caderninho limpinho. Isso. (Dói, umas porradas, né? He he.) Agora, dá aqui esse livro seu publicado. Vamos colocá-los na balança. Sabe que balança é essa? É a balança da alma. Vou comparar a sua realização com o que você deixou de fazer. Vamos ver... aqui... pronto. Ah, eu sabia! Veja como seu caderninho pesa muito mais que essa bíblia que você escreveu e publicou. Claro! Mil livros seus não valem o brilho de teu caderno. E eu sei muito bem que você entende o que eu quero te passar.

__— Não...

__— Oras. Me diga: como você escreve? O processo, da idéia ao finalizar, essas frescuras de escritor.

__— Eu... tenho a idéia; escrevo de qualquer jeito no caderno; daí, num outro dia, abro; leio; se ainda fizer sentido, eu começo a digitar; e vou lapidando; até chegar no que eu publico.

__— Exatamente. E quer saber? Essa é a grande metáfora da sua vida. Ou, como preferir, dessa sua morte. Morte imaginária.

__— ...

__— Você quer escrever a sua vida, não quer? Quer, mas! Reflete tanto, e demora tanto para sair de seu caderninho, que a perde! Esse seu caderninho é a extensão de sua mente. De sua memória. Você quer guardar o momento, mas para compartilhar com os outros você simplesmente não aceita a imperfeição! Quer que seja memorável, mas pensa tanto em como escrever, ou como viver, que acaba "morrendo". Sua vida é linda, acredite. Mas somente dentro da cela que é este seu caderno. Isso aí dá tantos anos de vida! Mas o que você tem de rascunho, tem de perdido. Aí, quando vem a lembrança, ou quando você abre de novo a porrra do seu rascunho, já não tem a energia daquele momento que o inspirou. Aí fica nesse saudosismo abstrato, saudades de não ter feito, só ter sentido. Você é um cara que tem muitos sentidos agudos. Exceto o tato. Ou con-tato, sacou, sacou?

__— A águia está mais forte que o touro e o leão juntos...

__— Isso. E, sinceramente, onde já se viu isso? Nem metaforicamente isso é aceito; já que, metaforicamente, a águia mais forte é você, e veja seu estado... “forte”.

__— O... obrigado...

__— Espere. Tem mais, tá pensando o quê? (Já disse que não quero que volte aqui tão cedo). A águia, preste atenção, a águia tem toda a atmosfera do mundo para aspirar. E o aspirar é a primeira fase da respiração, que oxigena o sangue. Sim, o sangue, que leva energia pro coração, e para as pernas. Suas pernas têm energia de sobra, mas estão explodindo. Ela espera demais o aval do cérebro, da águia, mas o pulsar é a cada segundo, e por isso , quando viu, a perna já tropeçou em si mesma. Isso não é harmonia. É por isso que você não se cansa. Você não se acaba. Você acumula energia que te implode, ou explode solitário, que por isso vira um vulcão (como você chama aquele sitezinho com textos, mesmo?), e aí sempre tem fôlego pra tudo, mas nunca fica ofegante. Potencialmente, você até que é foda. Mas (outro trocadilho, posso?). Potencialmente é foda, mas esse seu caderninho é só punhetinha. Só aspira, não expira, só aspira, não expira. Você não vai chegar lá assim. Seu... “aspirante”.

__— Putz.

__— É. Essa doeu em mim também. “Aspirante”...

__— Mas até que faz sentido.

__— Pronto, acabou a festa. Agora, suma daqui!

__— Cara... obrigado. Isso são lá verdades. Sumo daqui pra já.

__— Mas calma, eu quebrei sua perna, não vai tropeçar!

__— Não preciso dela. Não aqui, agora. Olhe.

__— Ah, sim. Você e suas asas de fênix imaginárias. Vai pro inferno. Que dizer, não!

__— He he. Adeus.

__— Quê?

__— Hã, hã? Sacou?

__— ...trocadilho maldito... Antes de ir, só mais uma coisa.

__— O quê?

__— Tudo isso que eu disse não serve só pro seu escrever, ok?

__— O que quer dizer?

__— Bom... É que me daria muito gosto te foder com meus castigos purgatórios, depois que você morrer de verdade. Mas!... apenas se isso aqui existisse e não fosse outra invenção sua, não é mesmo. Afinal, você já leu aquela sexta parte do terceiro capítulo de Crime e Castigo. O inferno não são só os outros. Enfim, você entendeu o que quero dizer.

__— Entendi. E... até um dia.

__— (Tomara que não.)

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__Todo o inferno está contido nesta única palavra: solidão. (Victor Hugo)

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__Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno. (Van Gogh)


A lava purga.

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