14 de janeiro de 2006

O Saara.

__Uma sombra serpenteia.

__Pra quem vê ao longe, é isso. Pro olhar próximo, é meu corpo caído, cambaleando.
__Arrasto-o arranhando cada membro. Levanto do chão, titubeando, nocauteado.
__Uma gota de suor, densa, quase só de sais, cai da testa.
__É a primeira há dias.
__Dou adeus.
__Energia é nada.
__O externo não oferece atração.

__Minha boca seca. Sem saliva. Sentidos derradeiros.
__Ranhuras internas, sabor da mucosa.
__Meus dedos, empoeirados. Minha face, áspera. A garganta clamando.

__Sinto meu esqueleto. A mais nu das formas humanas.
__Eu, arenoso. Raspam-se as articulações.
__Eu tento, eu tento.

__O sangue coagulado, num bombardear fraquejado e sem vontade.
__Desesperança é branca, amarela e laranja. Com mancha de sombra ao centro.

__Afundo meu pé até a canela na areia flamejante. Lanço a outra perna à frente.
__Meu corpo já não tem calor a dissipar. Foram-se o suor, as lágrimas, os gozos.
__Apenas ardo. O sangue arde. A pele é só ferida. E sem sentir.

__Mergulho os pés enquanto caminho na densa massa de fogo.
__Os músculos queimam duas vezes. Uma pelo sol impiedoso. Outra, pelo esforço que fazem: puxam a perna afundada nessa movediça, enquanto a outra, de apoio, sem apoio, torna-se a nova a ser resgatada.
__O arranhar do esforço muscular, lesionando-me em auto martírio.

__A cada passo profundo, cavo mais, penetrando-me na concha protetora. Ela é a salvação dos tolos.

__Do solo, uma mão agoniza. É só ela.
__Sou eu daqui a pouco. O clima me fagocita.

__Um lençol freático se debate à linha do horizonte. No varal a secar.
__Se debate ao vento. Mas não há vento. Não há refresco.

__A terra paga seu imposto ao rei do meio-dia. As últimas moedas, últimas gotas.
__O lençol, antes subsolo, antes nutrindo os seres, se dissipa acima do relevo, ao ar, dando adeus, prometendo ser mortalha insípida, um dia.

__Um punhado de areia fora pedra no passado. Todas as lápides do mundo me puxam ao inferno. Bebem a água, pagam ao sol, e me abandonam encostado numa pedra, que será areia no futuro.
__A Erosão dos deveres sociais tem injustamente o deus do amor embutido no nome.
__Porque me erodem. O porquê.
__Por quê?

__Terra asfalto. Pedras de escapamento. Túmulos de andares.
__E cadê Antares? A "Rival de Marte"?

__De Marte. À sombra da cidade do tudo pode. Milhões, e um vulto.
__O deserto da solidão. O Saara metropolitano.
__Vai não-vai, fica não-fica, estar sem estar, brincadeira do morto-vivo.
__Luzes piscando, batidas surdas, vozes mudas. Secura.

__Um velho rico, jardineiro, marinheiro. E é o lado que preferem não ver.
__Nem num lado, nem no outro, nem o do meio. Meu caminho é o do fundo.

__Camelando. Procura-se.

__Mas, espere. Aquilo ali não será...? Sim, deve ser! Sua sombra acolhedora, seu lago de saliva doce, seus frutos de reviver.
__Minha alma sorri. Eu decido ir até lá.

__Pernas, vamos, forcem-se um pouco mais! Pode ser que ela se vá!
__Coração! Acorde, coração! Preciso do seu sangue. Dê-me o cultivado de dentro desta caverna.
__Ei, tu. Estás vivo! Esquece esta dor. Lubrifica com a vontade teus últimos passos. Dela, sairás purificado.
__Olhos, foquem-na. Não a percam de vista. Ela está lá, atrás dali.
__Corpo, batalhão todo, avante!

__Eu estou chegando. Já estou perto. Quase... lá... ah!

__Nos últimos metros faltantes, a alegria explode cada célula, e me lanço de abraço a ela. Caio de olhos fechados, abraçando aquela maciez, tendo em meus braços todo um futuro, toda uma esperança, toda uma saída para escoar a energia que as lamúrias me parasitaram. Sorrio, caem lágrimas, completo-me. Um ninho de amor, uma raiz que nasce e germinará. Perco-me nestes sonhos acordados. E fico, no chão, na sombra, caído, feliz, sorridente, com as veias loucas para sentir o sangue fluir como antes.

__Opa. Meus braços queimam! Minha boca, minha boca! Está cheia de... ptf! O quê?...

__Água, água!

__Pedir por água é, além de inútil, arriscado. Os cristais de areia inundaram meus pulmões, preencheram a garganta, e agora sequer respirar consigo.
__O peito não tosse. Morreu. Temo descobrir o que foi então que abracei.
__Abro os olhos, e o horror me toma conta. Foi-se a sombra, foi-se o lago, foi-se seu corpo. Abracei o delírio. Beijei a insolação.

__Era tudo miragem.

__E não há mais poupar de energias. Os membros se estatelam ao chão, fracos, pedindo à terra um pouco mais de energia. Uma piedade, uma chance.

__E tudo que ouço é o vento solitário assoviando nos desgastes das rochas.

__O lapidar na lápide. Buscando uma saliva que refresque, que renove, que eu beba e que eu viva.

__Morto pelo oásis imaginário, no romantismo masturbado.


A lava lava.
Deserto queima.
Que venha a fênix.

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