2 de fevereiro de 2005

Casas de Intolerância.

Voltava da noite que ficará memorizada. O que mais poderia querer, além de tudo aquilo por apenas vinte palavras? — Exatamente! Nem três minutos, e o encabulado... ao som de muito rock no ouvido. Fear of The Dark, Crazy Train e outras que não lembro, tocadas com perfeição pela banda cover.

Voltava. Era cerca de cinco da matina, e eu voltava, a presenciar o sol clareando o céu, e sentindo os ventos frios e calmos da manhã, a pé pelas ruas escuras e sujas de Pinheiros, ruma ao Largo da Batata esperar pelo ônibus da minha Odisséia. Então, passei em frente a uma “casa de tolerância” mais conhecida como puteiro e não pude deixar de viajar para dentro daquele ambiente de cores néons e ritmos musicais pornógrafos.

Será que é por ser de escorpião? Ou será resultado à aversão ao mundo limpinho — fisicamente e moralmente — da faculdade, da empresa, da “realidade”? Seja o que for, eu tenho essa atração por locais sujos, e vejo uma aura filosófica e não sei o quê nos becos com lixo, bandidos e ratos. Apesar de odiar ratos.

Essa minha viagem foi relembrada, hoje, porque li uma entrevista sobre amor e casamento entre turistas e prostitutas. — Veja em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc3101200514.htm — E a entrevista, não sei bem o porquê, me comoveu. A história de sucesso, a história de fracasso, todas comoveram-me. Algumas por sustento? Outras por gosto? (sim, há). Outras, ainda, por escravidão? A essas, sou contra a prostituição. (Se bem que a gente já se prostitui por um pedaço de pano, um calçado de marca ou um amor de ascensão — todos escravos, do desejo.)

A entrevista também me fez lembrar de uma discussão cujo tema, o trabalho “das colegas”, fora ocultado perante meu avô conservador, e que este, ao perceber o que dizíamos, repreendeu com seu olhar cristão. “Mas a prostituta é umas das mais antigas profissões! O que Jesus, aquele esquerdista, que por sinal é seu Senhor, diria sobre elas?” — pensei.

Aí leio uma matéria e vejo que os motéis fazem muito sucesso na hora do almoço: para executivos e outros membros corporativos. Eles ficam 30 minutos, 40... e voltam às suas mesas. Ambos da mesma empresa, muitas vezes.

E em “Pantaleón e As Visitadoras”, de Mário Vargas Llosa (recomendo), a história narra como que o Exército peruano (acho) na Mata Amazônica fez para amenizar os anseios violentos de suas centenas de soldados: com dezenas de quengas, todas com um processo de logística exímio para atender a tamanha demanda.

E o que esse três parágrafos têm a ver com os anteriores? — E é aí que entra a minha defesa da prostituição (acima dos 18 e por livre arbítrio). — No exército, era controle; no motel, era saída; e na história; a presença. No exército, o uso de seus serviços era necessário, pois quem suportaria conviver anos sem a presença feminina, e ainda por cima, ter que dormir todos os dias junto a outros machos mal lavados? Eles ficavam nervosos, como ficavam! E eram putas as salvadoras; não só dos homens, que se transformavam nos mais carinhosos seres, mesmo por meia hora, mas também para a chefia que analisava friamente o contexto daquele pequeno meio social. Era necessário.

E quanto ao motel? Uma vez dentro da empresa, do ganha-pão, pisamos como celibatários e reprimimos nossos desejos em nome da burocracia, das regras corporativas, do instinto coletivo de imposição de seriedade. Até os estudiosos de Recursos Humanos têm aula sobre as prisões psíquicas nas empresas; e Freud resumia muitas coisas à repreensão sexual. — Novamente, temos um microespaço social, onde devemos ser católicos e que, por isso mesmo, alimentamos nossa necessidade acumulada dia após dia por pirar, por dar-se o luxo de ser irracional, por comer-mos uns aos outros. E aquele motel é feito para quando o desejo de burlar o sistema for mais forte, bater sem igual à porta querendo sair, para os felizardos que encontrarem alguém que seja motivo de generalizações sobre o comportamento sexual: ou seja, o casal que quer foder atrás do muro da igreja; e que provavelmente serão ícone de outros libertinos. Em ambos os casos, tanto no exército quanto na empresa, são impulsos sexuais que precisam escoar, e cada situação pedirá uma resolução.

Mas, melhor dizendo: pseudo-libertinos. (Pode soar como generalização).

Quanto à presença da história, uso-o como exemplo de que a prostituição sempre foi necessária à conservação de nossa espécie. Evita stress de testículo e, em menor escala, o stress da gruta com teias. Quantas guerras não teriam ocorrido se os imperadores não tivessem à sua disposição os serviços de suas concubinas? Afinal, sexo relaxa. E, inclusive, na cidade imaginária de George Orwell, em 1984, o sexo era proibido porque era um meio de controlar os anseios das pessoas e direcioná-los ao ódio e à expressão ululante contra as forças inimigas. Mais ou menos o que as empresas fazem (em outro sentido; e não espero que ninguém me entenda, neste ponto). — Mas como na Mata Amazônica sequer havia inimigos...

Eu olho para a acompanhante e não vejo mais o tal mal. Não queria dizer isso explicitamente, mas às vezes “investimos” em roupa, carro, perfume, gel, maquiagem, saltos, cirurgias, sofrimentos, mas a recompensa só vem a prazo, sem a correção inflacionária ou os juros inclusos. Enquanto isso, mulheres e homens a todos os preços estão esperando pela solicitação de serviço.

Sim, eu sei que há o amor, que é o quê diferencial. Mas sei também que somos iludidos por nós mesmos sobre as impressões causadas pelo nosso “amor” comparadas às impressões que o jornalismo, a propaganda e a tendência do verão nos fazem. É o quarto poder, desculpe; impossível estar alheio. Até os animais fazem isso, ao entregarem seus corpos e vidas aos mais poderosos (que, claro, é uma questão de critério; e também sobrevivência).

E que mal há em ser prostituta/o? Algumas/alguns saem até mais barato, tratam melhor, etc. — Mas o quê? Você acha efêmero, mundano, vazio e sem sabor? Mas afinal, de onde vem o sabor? E o que é mais efêmero que as impressões que causamos para nos seduzirmos? Essas nossas ilusões que sempre precisam ser alimentadas. Também não são efêmeras?

Não sei bem como explicar. Mas certa noite eu sonhei que visitava um puteiro, e lembro-me como se fosse real a minha admiração pelo local. Pequeno, mas aconchegante. E, com a garota que me seduziu, comecei a puxar conversa. Dizia que me sentia bem entre os renegados, os marginalizados da sociedade. Que escritores como eu (eu o era no sonho; porém, escritor de aluguel) eram como putas mentais. Enquanto elas vendiam o corpo e podiam deixar a mente intocada, eu vendia minha mente, fazendo com o corpo somente o que eu queria. Que quem vende seu talento ou se entrega à força capital é igualmente prostituta; mas que, porém, a moral só condena um dos lados. Prostitutas eram o yin do meu yang. Ou ao contrário, talvez. Falei que todos fazemos por grana ou poder — quase todos, mas não conheço ainda exceções —, e que eu tinha abandonado meu curso natural de ascensão na empresa porque não queria tornar-me um gerente ou diretor com muita grana e pouco tempo para mim mesmo. Mas de que adiantaria, se de qualquer forma eu estaria vendendo parte de mim? Que diferença faz eu vender minha bunda à cadeira, meu rim ao mercado negro, minhas idéias à corrupção humana ou o meu pau à senhora viúva? E no Brasil, onde terceiro setor não paga sequer meu aluguel? Disse também que, mesmo sabendo que elas ali estão a trabalho, eu acredito que o amor brote dos mais áridos terrenos; e que, veja só o oportunismo desse fraco piadista, veja que a palavra ‘amor’ está presente na ‘amoral’. E disse que achava bela aquela coincidência do Português.

A minha acompanhante se emocionou com a franqueza; e mesmo dizendo que estava de retirada, pois o barman avisara sobre um cliente interessado, mesmo assim eu tinha percebido que, encarando-a como parte natural de uma sociedade carente — nem nata, nem bactéria —, eu tinha ganho algo que dinheiro algum pagaria.

E no sonho ainda, a partir daquele dia eu não me dirigia a garotas, nos locais de encontro massivo, com a intenção de conquistá-las; e sim subvertê-las, envenená-las. — Já aquele e outros prostíbulos tornaram-se o meu ponto de encontro com algumas amizades. Enquanto assistia às pessoas pagando por saídas, uma conversa ali e outra aqui com as meninas me incentivavam a ser homem em todos os sentidos. Tornaria um desafio para mim conhecer pessoas “comuns”, em situações do cotidiano, onde a periodicidade dos atos programados falha a um gesto sincero.

Aí, pulando algum espaço temporal, eu criara certo afeto por uma garota de programa. Mesmo ela saindo do quarto com qualquer bruto, e em seguida sentando-se à minha mesa para dizer um oi, mesmo assim ela me chamava a atenção. O jeito como ela falava, sorria ou se insinuava para outros caras me instigava; mas eu não queria-a como sexo por uma noite. Queria tê-la como mulher em sua completude. “Poderia abraçá-la? Poderia beijá-la? Teria nela confiança?”.

E alguns meses depois, tínhamos um plano semanal que dividia-a entre os dias que ela dedicava ao trabalho e os que o fazia para mim. Às vezes, os editores pagavam bem, e eu oferecia a ela jantares para agradar ao seu delicado ego feminino; outras, era ela quem me sustentava, me agradava, bajulava. Suas amigas se emocionavam, me ofereciam ménages, e outros presentes de coração, pois tinha tornado um herói do submundo. Um Batman. E mesmo combatendo em todos os primeiros dias contra meu ciúme masculino de posse, o ranger e o abrir da porta do apartamento no centro, na madrugada, indicando seu retorno, fazia-me lembrar que ela vinha em busca de algo que só entregara a mim. E eu, que só escrevia, dedicava a ela a minhas palavras escondidas outrora. Eu sabia como tê-la, e ela a mim. Éramos dois animai nos bicando, formando um 8 deitado, o símbolo do infinito.

E esse foi um sonho que até agora busco interpretação. As prostitutas são o símbolo do remédio de uma doença não diagnosticada. E quando essa doença for erradicada, elas serão tão veneradas quanto a sinceridade.

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