12 de julho de 2004

Não me interprete mal! — A voz do texto que não vomitamos ao passar mal.

No domingo estava eu na casa dum amigo, conferindo pela Internet quanto fora seu resultado no Enem. E dentre as 63 questões, lá estava uma daquelas dos tempos antigos, dos tempos modernos, aquele tipo de questão que no colegial tanto apavorava minha intuição: “De acordo com o texto e as figuras de linguagem utilizadas, o que quis dizer o autor com o trecho...”


Dizem esses grandes estudiosos que, “graças à época em que vivia o poeta, seus pesadelos refletem a ansiedade da burguesia em relação aos fatos que decorriam constantemente, espelhando as paixões de um povo” e esse tipo de interpretação. Pois quer saber de uma coisa? — Que se foda tudo isso.


Hoje, com alguns anos a mais e um curso de comunicação nas costas, eu pergunto para que raios existem, desde que entramos na escola, questões e provas sobre interpretação de textos. Por que é que somos obrigados a enxergar as entrelinhas observadas por um cara que se diz mais culto que a gente, sentando a bunda na diretoria de alguma universidade ou academia de letras? Já que é uma academia, eles deveriam aproveitar o nome e malhar um pouco mais suas idéias sobre interpretação dos clássicos.


Até a Teoria da Comunicação já afirma: a mensagens não é feita apenas pelo emissor; e ,segundo um outro autor, "uma vez lida, a palavra é metade de quem diz, metade de quem ouve." — O processo comunicativo acontece da seguinte forma: há um meio, um ambiente, uma situação que envolve tudo; neste bolo, surge o emissor, que utiliza códigos para formar a sua mensagem; do outro lado, está o receptor, que pode ou não ter no repertório o mesmo código, e isso influi na decodificação da mensagem; há uma resposta, que volta para o emissor como um retrocesso (feedback); influindo em tudo isso, existem os ruídos, que são diversas formas de atrapalhar o processo. — Agora, analisemos quem é quem, nos dias de hoje, em leituras colegiais preparatórias para vestibular: o ambiente é a época, o emissor é por exemplo Fernando em Pessoa, o código é a metáfora, a mensagem é Mares de Portugal, o receptor é o aluno, que lê cada verso, compreende cada linha e dá como resposta uma exaltação mórbida ao grande poeta e tira 10 no exame, certo? — Errado.


Inclua no ambiente do emissor os processos mentais que porra louca de época nenhuma descobrirá do que se trata; isso basta para que nenhuma prova seja válida. Mas tem mais. Misture na codificação um elemento que nenhum racionalzinho de merda saberá lidar: a emoção. Lembre-se também que ninguém é obrigado a saber que o sobrinho do cunhado do padrinho do autor tinha falecido na época, para sabermos realmente o que influía nas palavras escritas com e sob pressão. E voltemos agora para ano 2004, época de Enem e vestibular.


Eu tenho 17 anos e ouço Avril Lavigne, Charlie Brown Jr. e rádio Mix FM como prova de minha juventude revolucionária e independente. É suficiente para entender cada lágrima do poeta defunto. E, tipo assim... putz meu, tipo... sei lá, sabe, eu ainda naum devo, tipo... saber o q eu qro da vd, qro curir a minha vida, ser + eu, sabe... tem q t o dom pra entende o dom [Casmurro], neh naum? — Ainda bem que existem os manuais da Fuvest sobre as 10 obras do ano. — Na caldeira, também tem a pressão para passar no vestibular (aos 17, 18 anos). Tem que entender o que o autor quis dizer (ou, pelo menos, entender o que o professor com sua análise quis dizer); porque sou burro, não enxergo o que todos deveriam ver. Eu não posso responder o que eu senti lendo “quanto de teu sal são lágrima de Portugal” porque minha viagem foi para outro lugar, diferente do que eu li no jornal do vestibulando. Você sabe o Guimarães? Putz, eu só entendi depois que li a resolução do ano passado... — “E fizeram o carnaval” na interpretação do cara. Mas, peraí, nas 5 alternativas não está a minha percebida! O que é isso, Drummond? — Bah, vai se foder, vou chutar a B!


O parágrafo anterior é nojento. A realidade é nojenta. No colegial, o que salvava meu Português era a gramática, porque eu não sabia entender o que os outros entendiam. Por isso, fiquei traumatizado com interpretação de textos. Lia com má fé, e por isso perdi muitos autores que são bons pelo que foram de humanos, não pelo que são de robôs em treinamento para a prova de cem questões. — Isso mesmo, foi-se o tempo dos professores-professores. Hoje, prefiro chamar as escolas de prestadoras-de-serviços-para-consumidores-que aspiram-sucesso; e talvez mais por elas do que pelos próprios mestres, temos professores-treinadores. Ensinar? Formação humana? Pra quê? Tenho mesmo é que ganhar dinheiro propagandeando a todos quantos de meus alunos entraram de primeira em Medicina na USP. — E eu não acho que sou o único com traumas de grandes autores, escritores “dos que fazem pensar”. Essa frustração deve ser o motivo para que os best-sellers sejam justamente os de auto-ajuda, ou os autores "super profundos". — Será que é tão difícil assumir que cada um tem a sua interpretação? Que cada um tem seu repertório pessoal? Que temos 17 anos e não é pela digestão forçada, nem por osmose, que aprenderemos como apreciar um texto? Os alunos deveriam ler filosofia individualista, não correções de prova.


Mas creio que sou, neste ínterim, muito estúpido, muito ignorante. Mas, quem sabe?, não serei eu o garoto do reino, que olhou para o rei pelado, que sorria diante de pessoas que fingiam ver nele seu traje magnífico, e disse, para surpresa de todos: Vejam, o rei está pelado!?

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