17 de julho de 2004

Após um Trópico de Câncer.

"E Cronstadt, depois que receber as notícias, viverá um pouco mais vigorosamente, um pouco mais brilhantemente, durante cinco minutos; depois cairá de novo no humo de sua ideologia e talvez nasça um poema, um poema com um grande sino dourado sem badalo." (Trópico de Câncer, Henry Miller)

Ontem, numa tarde nublada de domingo morno, terminei definitivamente a versão beta daquele que seria meu primeiro livro. Um relato de minhas primeiras reações, antes de calar-me sedado, como toda rotina contagiosa, de quando andei e andava de trem. Encontrei uma metáfora que, dentre tantas historiasinhas, perde-se, e por isso sinto que aquelas mirradas sessenta páginas — o total que deu, escrita de um canto a outro — não são mais que um sino sem badalo. Funciona a pedrada. Lembro-me de quando entraria no caos das letras na defensiva, com os braços a proteger-me a face. Sempre lembro do que já sonhei. Mas essa merda não sai porque detesto voz mansa, como as de quando pedem para que eu me acalme, mesmo a estar com apenas um pouco mais de agitação, nada de mais — e agora isso soa e instala-se em meu cérebro a barrar-me as idéias. Temo perder o fio, pois já no súbito ligar de máquina esqueci-me de metade do que me fez levantar.

Sim, sinto-me patético naquele "relato de pensamentos duma viagem", pois tenho em memória os mesmos gênios que ascenderam esse fogo, caras como George Orwell ou Umberto Eco. O que mais depois deles? Ter a experiência de 1984 foi, pra mim, como numa transa inesquecível, um gozo aparentemente inacabável. Mas acabou, e fica na lembrança os prazeres daquele percorrer de pontes; e não há cinco a um ou tec tec que supere aquela sensação. Hoje eu os odeio. Sou filho de Saturno do ledo engano forjado antes da pedra. Mas a tímida chama, brava e pavorosa, queima no cerne, e o ímpeto de sentar-me escravo do teclado soa-me um maso prazer.

Uma conhecida minha, motivo de repentina paixão no passado, revelou-me uma boa, ou pelo menos aos olhos de um leigo como eu, promissora escritora. Ela escreve pequenos contos revoltosos, contra as comuns leis das aparências, a sociedade televisiva, e entre outras coisas clichês na juventude pseudo-revolucionária. Chamo pseudo, mas não seria o caso. Inter-revolucionária, pois banca o grito entre amigos e próximos, mas se nega à estandarte do berro público. Acho que já superei essa fase. Eu contradigo a mim mesmo em minhas paixões. Sempre voltando os olhos para as mais independentes (ou assim chamadas) e cabeças (ou assim chamadas), mas sinto um certo asco nessa toda soberba. Desejo de destruir orgulho? Talvez. Contradigo-me pois quero amordaçar a som de suspiros essas bocas faladeiras, mesmo quando mudas, e abafar o que me faz levantar bandeira. Sinto ódio pois sou um tonto perto de sua total falta atenção. E faço justiça a essa falta de atenção, sim. — Já conversei com um amigo, o Ássimo, a respeito desse minha total falta de modos no apresentar-me; e tenho consciência dos resultados; mas o que posso fazer, se não me aflige a reação tão contrária a meus primeiros objetivos? Assumo e assino meu próprio sepulcro. — E odeio meu amor por elas. Mas a garota de quem falo, a escritora jovem (mais justo que se fosse "jovem escritora") fez-me lembrar do para que sirvo mais fielmente.

Tenho ainda, depois do Trem, o Menino, a Faculdade, e quem sabe um dia, após muito estudo, uma Guerra Astrológica. Mas seriam livro grandes, demandando muitos dias, e isso enjoa um bocado para quem tem sede por mudança — quem dera pudesse escrever mil páginas por dia! — e por isso este blog aqui, chamado de A Lava Lava, ser-me-á de muita serventia. Há de haver quem leia e me cuspa, pois é um sino de ferro e ainda sem badalo, porque vim de baixo; não duma favela, confesso, mas foi demasiado tarde, para meus anseios presentes, o meu primeiro contato com os gênios — meu passado é assombrosamente metódico e fiel; mas esta é minha casa, e aos que entrarem, uma honra, aos que por ela passarem, um prazer.

Nenhum comentário: