18 de julho de 2005

De repente, o nada.

No banco de ônibus, enquanto esperava o meu partir, e enquanto eu o fazia sentado e ouvindo meu discman, ao meu lado sentou uma senhora baixa, encurvada, de seus lá sessenta anos, mestiça e de dentes desalinhados; olhou pra mim e sorriu por simpatia. E sabe-se lá o motivo (1), disse do nada:

— Você vê, hoje em dia... — disse sorrindo; “sorrindo”, mas não sei até que ponto era felicidade interna ou se é por coisa de velhice, já que alguns mais idosos abrem a boca para reclamar e mesmo assim expressam um sorriso de rosto gasto. Ela disse, sorrindo e bem pausadamente:

— Você vê, hoje em dia... as pessoas não se respeitam mais.

Olhei para ela e fiquei calado, esperando a continuação. Por algum motivo (2) eu tenho simpatia pelos mais velhos. Não sei realmente o porquê, mas deve ser pela felicidade que eles aparentam ter. São serenos. Não quero ser sereno, mas acho, como se diz... bonitinho?

— No começo, é um amor que só... daí, depois, vai vivendo, vai vivendo... e perde o amor. Amorzinho no começo, “patroa” no final...

E por algum outro motivo (3) — repare que nem eu sei ao certo o porquê de estar escrevendo isso, nem o que me motivou a achar o fato tão interessante, e veja que estou perdido num caldeirão sem receita! — eu quis dar continuidade, fazer um gancho para mostrar à velhinha que eu estava ouvindo, que estava acompanhando, que ela não estava solitária. Solidão. Foi o que imaginei que a dona sentisse, ao vir conversar comigo — um jovem e estranho e desconhecido — sobre alguma frustração pela qual ela ou alguma filha tivesse passado. Naquela ocasião, recentemente tinha discutido com um amigo sobre os relacionamentos de pessoas desesperadas por símbolos sociais, como, por exemplo, o do casamento. Casamento com separação soa estranho na teoria. O amor pode acabar assim, do nada? Uma pessoa pode mudar a ponto de não ter mais volta? Na verdade a outra não deveria conhecer o outro lado, ou prevenir e avisar dessa mudança frustrante? Casou sem saber das faces ocultas do outro? Por que casou? Para viver numa suposta felicidade extrovertida (que vêm de fora, não de dentro)? Essas e outras questões eu deixo para pessoas abertas responderem. Sem condições para isso. Mas vamos à velha. Respondendo aos seus comentários sobre perda de amor, eu fiz a nota:

— É que tem gente que se casa por casar...

À qual ela respondeu olhando com olhos tristes — mas não de tristeza, e sim de expressão, de pele velha caindo e formando aquela queda de pálpebras que parecem ser de pena ou outra sensação fria; aliás, nunca é felicidade, nem tristeza; o que esses olhos têm de enigmáticos! Ela respondeu:

— É...? Você, não vai se casar, um dia?

Que pergunta para um homem de vinte anos! A própria pergunta envelhece quem a ouve. Senti-me com 25. Quando alguém levanta a questão, meu cérebro imagina-me casando, e provavelmente os neurônios entram em estado de preparo. Eles fazem uma média da idade com a qual quero dizer o “aceito”, que é a de 30, com a idade atual, 20. (20+30)/2=25. Mas, não, não posso pensar tão distante! Imagine, o “daqui a 10 anos” depende em 99% de ação e ocasião e 1% de opções. Ou seja, a proporção, metodicamente dizendo, é esmagadoramente de comodismo (vontade de se casar lá longe) contra a de ilusão (enaltecer a cerimônia tão cedo, tão inexperientemente). Respondi a ela o seguinte:

— Não hoje.

Um silêncio. Um olhar de incompreensão. Agora são dois olhares de incompreensão.

— É?...

Silêncio, faces voltadas para frente, um ar de “pois é...” no ar.

— Então, com sua namorada, ou noiva, faz carinho sempre, seja carinhoso, não muda, viu?

— Cuidarei.

E sorri. Meio amarelo, meio tímido. Eu não costumo sorrir quando estou me afundando em pensamentos, questionamentos, tentando descobrir como cheguei naquele momento de conversa social com uma dona desconhecida. Não sei se foi por pena, comoção ou agrado, mas sorri. Ela também, mas não olhando para mim ainda. Foi quando vi novamente a quantidade de rugas e sua miudeza. Ela talvez tivesse 55, mas alguma coisa, as dores da vida, por exemplo, tenham marcado em seu rosto. — Odeio expressões com “da vida”, principalmente quando têm “marcas no meio”. — Eu sorri, ela sorriu, e calamos. Apertei o play de meu discman e voltei a ouvir música. Senti um vazio naquela conversa, como precisasse continuar. Mas ficou por isso mesmo. O ônibus ligou, eu subi, ela subiu em seguida, passei pela catraca e ela ficou nos bancos destinados aos idosos, lá na frente. Senti vontade de sentar-me com ela. Não para continuar o papo, e sim por sentir que ela estava só, que precisou falar com alguém, e que eu sensibilizei-me com aquilo e que daria meu apoio sentimental para ela ter uma noite tranqüila. A presença silenciosa. — Mas, por dois motivos, não o fiz. Primeiro, por timidez. E timidez porque, em segundo lugar, consideraria a situação um tanto ridícula. Por mais que tenha dó das pessoas, não sou a favor da ação por pena. O meu lado orgulhoso diz: não poupai os fracos! Mas o lado orgulhoso-no-bom-sentido disse: em compensação, ela superou as barreiras sociais psicológicas para abrir a boca e falar algo que a afligia. Isso é digno de louvores! Na indecisão de sentar ao seu lado por reconhecimento de liberdade ou continuar onde estava por desgosto pelas cenas boazinhas, a supremacia da comodidade reinou mais uma vez: eu já havia pago o cobrador. O passe escolar separou-me da velha.

A placa da casa de Nietzsche, meu hóspede de veraneio, dizia “Esta é minha casa. Aos que entrarem, uma honra, e aos que passarem, um prazer.” — Mas de repente uma placa mais florida foi posta durante sua ausência: “Aos que observarem, uma honra, e aos que desdenharem, um prazer.” Surrealismo, uma placa na minha testa. Muitas vezes não permito que a porta se abra. Acho que vão escalar as paredes e entrar pelo telhado diretamente no quarto. Se abrirem a porta, ela não estará trancada. Mas também não há placas dizendo “entre”. Talvez a do Nietzsche afaste os que não compreendem. Essa minha timidez! Mas se puxarem, eu continuo, não será em mim a pausa do diálogo. Chato não é acabar o assunto. É vacilar ao começá-lo. Esse meu silêncio!

Voltando à velha. Ou melhor, voltando ao que ela me fez pensar. E a velha? Será que puxou assunto porque seu marido não a amava mais? Porque seu filho abandonara a nora? Porque estava carente e queria alguém para conversar? Por simples impulso idoso? (muitos velhos conversam do nada). E aquele tema, sobre a curva descendente do gráfico amor versus convivência? Será que o cara que chama de “patroa” viu seu “amorzinho” numa cena demasiada íntima? Tal casal se casou em circunstâncias mais sociais que individuais? Exemplo: casou na comunidade da igreja — o que limita o campo de opções, e que foca demais a visão sobre o companheiro, e que também absorve a felicidade da comunidade e acaba por cobrir uma possível desavença sentida entre um e outro? Quanta coisa me vez pensar aquela pobre coitada!

Mas, que estranho. Eu não converso com meu pai. Quando iniciamos um assunto, a sensação é de estar com uma velha desconhecida. Nunca fomos íntimos, apesar de sentir-me próximo dele. Ok, pouparei quem lê, pois isso está parecendo diário de menininha. Por que cheguei a essa confissão? Qual será o (4) motivo?! Tanto espiral, será que fujo da alguém. Sim. Creio que foi para adiar o final seco:

Duas semanas depois, eu estava no mesmo ponto de ônibus, na mesma situação: espera, silêncio, discman. E passou por mim uma ambulante vendendo toda a sorte de besteiras alimentícias. A ambulante era miúda, de passo ágil e apressado, enrugada, preocupada. Era uma trabalhadora pobre em busca do último centavo para levar leite. Reconhecia velha. Mas não perguntou sobre amor, casamento, solidão. Perguntou se queria chocolate a cinqüenta centavos.



A lava lava. Essa aí foi garganta com cinzas

10 de julho de 2005

Palavras Covardes.

Deveria ter dito, mas não disse. Minha mãe sempre recomendava: espera a tormenta passar para poder abrir a boca. E o que ela diria da tormenta ígnea da paixão não revelada? Daquela angústia que cegava entorpecentemente, que nivelava o ser de 20 convicta a uma criança de 10 inocente? — Eu segui os conselhos de minha mãe. Hoje, o que restou é cinza. E arrependo-me profundamente. Nunca mais seguirei seus conselhos.

A quem eu deveria ter dito, há muito tempo:
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Diante dela, que no meu coração de lupa é maior que todas as nações e causas coletivas, não há palavra que expresse a admiração, encantamento e medo, ou palavra que absolva este corpo que vacila — olhos, mãos e lábios trêmulos, e voz que põe em evidência minha falta de dicção. As palavras salvarão este corpo que cai perante sua magia e sensualidade?

Até os órgãos discordam entre si. A cabeça desvia, o olhar volta. O tronco balança, os membros se seguram. O pulmão, que precisa respirar, e o coração, que precisa correr, são contra a nave-mãe, o congresso do cérebro, que, por tradicionalismo, é da turma do deixa disso. A maior guerra ocorre aqui dentro, entre as forças revolucionárias e os partidários conservadores.

Aproveitando uma falha da defesa dos dominantes
uma distração causado pelo provável estresse que as rebeliões implodem um sinal foi enviado do lado direito do cérebro (o não-racional) até a língua, e o sinal fugiu dos lábios e foi arremessado (a língua nem sempre sabe discernir) de encontro ao quem sabe. O sinal era uma palavra que desafiou a autoridade do sabido e temido, da ditadura social, e abriu suas asas em direção àquela que era estopim para a intraguerra. Linda.

A palavra soou solitária: Linda.

Mas foi como uma pedra arremessada ao muro. Por ter aquela beleza incógnita, e aqueles olhos carentemente disfarçados, e aqueles fios de cabelo timidamente presos, era de esperar que à palavra “linda” já existisse uma resistência. Por costume. Sim, com certeza. Muitos já devem ter dito. Desde os que, como eu, são encabulados, até os exércitos melhor comandados e de palavras mais experientes. Sim, já deviam ter lançado suas tentativas à esfinge em busca de seus tesouros escondidos.

Mas a tal palavra tornou-se heróica. Assumiu a honra de seu dono — o reino, não seu reinante — para morrer em luta. Ela foi, e voltou dura, mas saltou novamente e tentou cada vez mais crente, e, por isso, houve uma saraivada de dicionário pobre: Linda, linda, linda!. Uma heroína, que tornou-se, assim, superior, justamente por ser a primeira a agir.

Tocadas pela coragem, pouco depois algumas outras palavras — companheiras, mas que às vezes não convêm — saíram para auxiliá-la na causa e luta. Como, você, é, linda, ou Linda, como, nunca, senti, ou Apaixonantemente, linda.

E por aí foi. Aos poucos, graças ao furor causado pela impressão da barreira que nanometricamente foi transposta, multidões de palavras — agora nem sempre selecionadas — se jogaram, armaram sua estratégia e se lançaram àquele ser que finalmente começava a demostrar reação. O muro sentiu cócegas. Até feudos, antes nem tanto motivados, como o da astrologia, do cinema e dos assuntos-cabeça, se organizaram e enviaram seus pequenos exércitos em prol da conquista verbal. O final disso tudo? Cada caso é um causo.

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Nem sempre o muro é derrubado. Nem sempre existem ninfas apaixonadas esperando do outro lado. Mas a beleza da batalha faz o peito respirar fundo, a cabeça direcionar-se, os olhos se fixarem, o coração fluir em veias quentes, e os mandantes do reino até se calam e deixam escapar os prisioneiros da paixão, que pulam, dançam, sorriem nesta condição de liberdade momentânea. Um arsenal que faz o 8 pular para o 80.

E agora até os tradicionalistas se convencem da necessidade do embate constante a cada Linda conhecida. Não pela razão de conquistar o outro lado, mas por reconhecer que o estado de equilíbrio deste lugar só é alcançado com a união de forças na ação pela mais bela causa: dizer, de todas as formas desejadas, a quem mereça, com ou sem mérito, aquilo que neste mundo mais é Linda.


A lava lava. A explosão torna-me puro aos olhos de meu auto-comitê.