26 de março de 2005

Dois ângulos.

A seleção dependia de apenas um gol para que conquistasse a tão esperada vitória. O jogo estava parado no tempo e a torcida adversária vaiava; a aliada sofria em silêncio num estádio de quase cem mil pessoas. A bola, posicionada próximo no meio do campo, esperava com ansiedade para a bica anunciada. Do outro lado da tela, milhões acompanhavam indignados o jogador que entrava em campo, substituindo o tal famoso craque. Esse que entrava era eu. O silvo do apito, a corrida, o chute e o contorno da bola. Subiu no céu, fez a curva, em câmera lenta, rodando, rodando, e caiu em direção ao goleiro; um último desvio com o vento e ela entrava na quina do gol, fazendo rasante até na rede lateral, que só se mexeu depois que a redonda empurrou a costura da rede, balançando a teia branca e a teia de mãos unidas por todo o mundo. O autor do gol, estátua no campo, recebia os abraços e choros dos companheiros. E silenciosa era a expressão do adversário; que contemplava indignado a beleza fatal de tão certeiro chute.

Eu, nunca fui habilidoso nos esportes. Mas adormecido em meu inconsciente está a imagem dos golaços de videogame, das emoções de Copa do Mundo, dos capítulos de O Mundo da Lua, e talvez por isso, nos últimos dias eu tenho sonhado como todo moleque que joga bola no campinho do bairro. “Herói em campo”; “Chute certeiro dá título ao Brasil”; “Ele saiu da reserva e entrou pra história”; entre outras manchetes, que minhas extensões neuronais capturam como apelo de glória. — Mas ser tomado por tamanha discrepância nunca foi tão comum quanto agora. Quase diariamente eu imagino as mesmas cenas, as mesmas notícias, o mesmo chute. Mas, de acordo com o que eu conhecia de mim mesmo, elas não deveriam saltar com tanta freqüência.

Até antes disso, o desejo de ser o herói da nação, fazer o gol da vitória, destruir más expectativas, eram típicos de fases quando me encontrava cabisbaixo, sem auto-estima, sentindo a mediocridade correr em campo. Fazer O Gol era como tornar-me cavaleiro: alimentava o desejo de ser alguém diferente da realidade; ser um não-eu que estava muito além do que eu podia com meu mínimo esforço. O gol é o gozo típico do brasileiro. Fazer O Gol era como ser amado, ser admirado até pelas falhas, até pelas omissões. Fazer O Gol era o passaporte para viver ilusoriamente num mundo perfeito, onde tudo se ama em sua presença ilustre. — Mas, como estava dizendo, o sonho surgia quando estava em momentos depressivos; ultimamente, tenho estado depressivo? Pelo contrário: pessoas novas que conheço deram uma força ao sorriso espontâneo; o reconhecimento no trabalho motivou-me a ser mais produtivo; o sucesso recente de alguns amigos levantou-me para encarar com sede de louvor os trabalho que me arrastará por todo o ano; sendo assim, porque a imagem do Gol tem tornado cada vez mais presente, inclusive quando de olhos abertos?

Afinal, até pouco tempo, o meu “Gol” era publicar um livro que denunciasse por meio de romance a podridão de um povo. Depois, produzir um filme que colocasse os filmes “para fazer pensar” numa posição que a mídia de massa nunca dedicou; e eu ganharia o direito de ser eu mesmo com isso — afinal, a liberdade parcial é item de luxo de quem pode, não de quem quer. Como criador de um estilo artístico: eis o meu Gol. Mas nesses dias O Gol torna imagem literal: é a bola na rede, Brasil campeão. É um Gol mais fácil; depende da sorte também; não depende do talento, do esforço; um gol daquela distância tem a mão do vento, da chuteira, da distração do goleiro, da pressão atmosférica; tudo isso, muito mais do que o próprio pé. Um gol desse é, em conseqüência, dinheiro fácil, fama fácil, vida fácil. Será isso o que eu quero? Eu, além de todo mundo?

Eu estava no ônibus pensando no porquê de estar sonhando tanto, sonhando acordado. Imaginei: claro que é isso, eu tenho vinte anos e quero ter livre expressão, e quem consegue isso pela arte ou vem de berço, ou de QI, ou infelizmente terá que correr a vida toda atrás de seu diferenciado lugar na sociedade, e por isso eu devo, no âmago de meus desejos, querer tornar-me o autor do Gol para que eu, por exemplo, com a grana ganha por loteria montar uma editora, uma produtora, e assim tornar viável o que penso e sinto, mas que não falo, para um público que precisa abrir os olhos tanto quanto eu, e só com meus próprios recursos poderia publicar sem a interferência do dedo comercial; só pode ser isso; quem tem grana pode comprar o espaço nos cinemas e uma acessoria de imprensa e uma boa agência para manipular a mente do povo e fazê-lo comprar minha obra, e assim seria garantia do choque, da polêmica, do conflito e da guerra interior; isso é fazer o que quiser; um individualismo que só tornar-se-á suprido quando observar a água parada formar não apenas ondas para surfistas aproveitadores, mas tsunamis que destruam a fortaleza da moral; a força destrutiva de algo que não se pode pegar com as mãos: eis a suma do que temo ser cortado pelo varejo; essa mosca varejeira; O Gol é a ilusão da liberdade; e ter tudo que não tenho, vendo-me livre dessa missa domingueira chamada carreira.

Mas há contradição em imaginar que O Gol é o passo para a tal liberdade. Afinal, se no serviço eu conquistei certo espaço de opinião, se em casa eu pago contas, se o que sobra é destinado a um futuro carro, se eu dependo menos de carro de mãe para poder sair com quem eu quero, e se os poucos que me lêem projetam em seus elogios um certo sucesso, porque deveria tremer? Também conheço meu lado metódico, meu lado planejador, aquele que quer gozar de cada degrau, e que diz, sem eu reconhecer se veste capa vermelha ou asas e auréola, para não gastar toda a sensação de vitória em um só momento da vida; este lado chato também tem seu valor: ele diz para curtir cada momento de quase-chegando, em vez de apenas sonhar com o ainda-chegando. E, neutralizada a batalha de dois egos existentes, surge uma nova solução: a liberdade não se refere à idéia; refere-se ao corpo.

Faculdade; trabalho; consumo; todos são tentativas terapêuticas contra a incerteza; são termos de garantia; são esperanças. Investimentos em um mercado onde os juros estão cada vez mais injustos. Lá no Gol, eu reconhecia a liberdade do corpo, da física: a precisão do chute; o poder sair à noite às escondidas; ser o dono da situação. Será isso ser influente? Fluência é habilidade que, pelo menos oralmente, nunca dominei; mas lá, dar depoimentos era fácil como conversar com amigos; com mulheres, o chute era de pênalti. Dominar a técnica, a habilidade, a força, a beleza e etc. são formas de domínio do corpo; e para tal, é necessário investir no tempo. Tempo define o corpo, que define o sucesso; tempo é dinheiro num sistema onde o dinheiro é templo. Mas eu não sou dono do corpo, e talvez por isso eu pense em investir no tempo; Ó tempo, que nunca chega; essa previdência que para sempre é postergada; quando é que o terei para meu ego?

E lá no gramado eu não precisava sequer pensar nesse tempo; vinha e fazia. Sequer cantava o hino nacional. E não era por antinacionalismo; era mais, era menos: meu sentimento antigrupo vinha da minha noção de suficiência. Era um antigrupos; ou seja, eu seria chamado de antipersonalidade, justamente por não me prender à noção de personalidade que temos quando nas cadeias da razão. — Não era dono de nada; nem do campo, como as empresas do sistema econômico; nem da grana farfalhenta, pois assim eu compraria o juiz, como todo ser corrupto; e também, nem do tempo. Nem do tempo, pois em campo sonhado, uma vez me vi dominar o tempo – e, por conseguinte, o corpo e a liberdade. Os outros em campo estavam parados, estátuáticos, exceto pelos olhos que me buscavam insanos. Ah, mas quando me dei por isso, eu já estava impedido, muito à frente até da zaga conservadora. E, que merda! Se não fosse esse meu último olhar, essa preocupação com os outros de trás, eu teria alcançado a meta; ou, melhor, teria alcançado o céu, pois não teria objetivo enquanto desprendido do esquema tático. Foi por um segundo, e a meia-noite Cinderela desceu aos imóveis, e o juiz levantou o cartão verde; nem vermelho, nem amarelo. A bandeirinha levanta-se apontando para o errante, e pronto: espere mais uns dias, que a flâmula será artigo de comércio para os “rebeldes”.

E por também não ser dono do tempo, cá estou dando-me um intervalo. Eu, quando moleque, e até hoje, sempre optei por jogar sozinho. Eu treinava chutes no ângulo, direcionava os rasgo certeiros no ar, e tinha prazer naquilo. Mas em campo com um time, o desconforto de entrar na estratégia era motivo de ficar na reserva observando o jogo, que é como qualquer outro. E da mesma forma, recolho-me na reserva dos artistas, calado e sombrio, treinando chutes precisos para o dia que eu entrar em campo. Até agora eu só pus na trave, e na trave, e na trave; não há nem torcida pra gritar “uh!”. E de tanto tentar sem sorte, estou prestes a desistir da empreitada sem rumo; porque os outros jogadores parecem mais felizes sem a noção de liberdade, e de corpo, e de tempo. Sim! Encontrei a metáfora que arrasta o sonho ao cotidiano. Ah, mas essa imagem do Gol no ângulo ainda me persegue, e é ela a culpada da ansiedade adormecida. Uma hora eu surto, dou pancada e sou expulso à força. Até por escrever tudo isso, é como tirar um peso da consciência. Mas que merda, eu meu sinto como alguém que acertou a trave novamente.

Tenho medo da prorrogação.


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