31 de março de 2007

Poste a poste, post a post.

Sobre os filmes O Cheiro do Ralo e A Leste de Bucareste.



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O dia estava belo e a curva do sorriso era ascendente. Calor está contido em trânsito, mas não importava: semana generosa e econômica. (Descobri alguns pérolas na Biblioteca de Osasco, e na hora virei sócio). — Saldo positivo dois na seqüência eu nunca vi comigo), então decidi curtir um cinema escolhido na hora. Fui para a Consolação direto do trabalho e peguei duas sessões que valeram a pena.

__Um parênteses: eu estava no escritório fazendo reunião durante o final da tarde. Todo o suor da semana (que foi amenizado por estar em casa) foi reconhecido, bastante reconhecido, e de lá saí empolgado como nunca. Esse negócio de ser freelancer vai dar certo, é o que eu sinto. Principalmente porque olhando para trás, num dia em que eu tinha inclusive nadado pela manhã, e fizera tudo que tinha dever, achava que tinha o direito de fechar com chave de ouro com alguma surpresa instantânea.

__Confesso que a intenção era assistir a uma estréia de peça de teatro, no Sesc Av. Paulista. Porém, São Paulo definitivamente não tem mais espaço para carros, e é por isso que, com cinismo singelo de auto-desculpa, eu digo que contribuo para a melhoria do sistema viário tomando ônibus. Basta um livro da biblioteca numa mão e um apoio de equilíbrio na outra, e a viagem está garantidamente proveitosa.

__Desci na Concolação às 19h20 e em cinco mintos estava na sala. Escolhi pelo país. Leste europeu era inédito para mim.

__— A Leste de Bucareste? É romeno? Meia-entrada, por favor.

__Terminado, estava feliz pela mensagem do longa, e, empolgado, saltei os degraus de dois em dois e chegei à recepção cinco minutos após ter começado O Cheiro do Ralo.

__— Ainda dá tempo? — E entrei.

__Boas escolhas. Tão boas, que me sinto na obrigação de escrever a respeito de cada um. Sem pretensão de virar crítica de cinema (nem pense que isso será comum), e também contra meus princípios de tornarm o blog qualquer coisa parecida com um diário, mas dessa vez vale a pena pelos filmes. São temas recorrentes nos meus assuntos.

__A Leste de Bucareste mostra em plenas vésperas de Natal um professor de história, um velhinho que se fantasia de Papai Noel e um dono de uma precária emissora de TV. Passaram 16 anos da revolução de 1989 em Bucareste quando o comunismo foi deposto da Romênia e o objetivo da transmissão do dia 22 de dezembro (de 2005?) era levantar uma questão histórica e de identidade para a cidade (que não é Bucareste): Afinal, houve revolução naquele local onde eles vivem?

__O ponto do apresentador é o seguinte: existiu algum movimento originado ali mesmo, e culminou ao protesto final da multidão na praça? Ou o povo se reuniu apenas depois da notícia televisiva da revolução em Bucareste? Para isso, o apresentador do "talkshow" chama o professor de História, que diz que esteve na praça e que provavelmente deu início à revolta, e também um velho bonachão (e carismático para quem assiste!) que esteve entre as pessoas que gritavam "abaixo o comunismo".

__Acontece que os telespectadores que ligam ao programa desmentem o professor, apesar de que nenhum relato nem mesmo o dele mesmo consegue assegurar sua relação direta com a revolução que teria ocorrido simultaneamente à de Bucareste. Há então uma tentativa angustiada para reconstruir os fatos, estimando até mesmo os horários pontuais para que a história de todos pudessem se encaixar.

__— Você voltou do mercado a pé?
__— O que você fazia entre onze e meio-dia?
__— Passou pela praça ao meio-dia ou meio-dia e meia?
__Antes ou depois das 12:08?

__Por causa de desentendimentos, ninguém entra numa conclusão, e a transmissão começa a apontar um fracasso no objetivo. Porque nem os telespectadores assumem a possibilidade do erro, nem o historiador nega sua presença momentos antes da população se aglomerar. Até que, abatido, estressado e ansioso para que tudo termine, para preencher os vários minutos que faltavam o apresentador pede ao velho que conte sua história. Digo "até que" porque no filme a impressão é de fracasso mesmo assim; de que o relato do velhinho teimoso e inquieto seja apenas para encher lingüiça naquela frustrante edição.

__Mas pra quem está do lado de fora, uma bela metáfora é iluminada através do tímido e humilde relato do vovó.

__Resumido:

__Acordei às 6:30 e discuti com minha mulher. Fui trabalhar, porém fiquei abatido por ter brigado com ela e pedi permissão ao chefe para sair mais cedo naquele dia. Na volta, roubei três flores do jardim botânico e presenteei-as pra minha esposa. Que não disse uma só palavra, mas cujo reflexo pelo vidro da janela mostrava sua aceitação. Eu adorava seu sorriso, mesmo quando negado. Foi então que eu liguei a TV, vi as notícias da revolução em Bucareste e resolvi sair às ruas para mostrar a ela que eu era corajoso.

__O apresentador, acreditando que chegou ao ponto da questão, pergunta:

__Só após ver na TV? Então não houve revolução! Não foi simultâneo. Foi um levante garantido.

__O velho, com sua simplicidade e carisma birrento, responde:

__Eu acredito que houve, sim. A revolução são como esses postes de eletricidade que temos na cidade. Vai acendendo um, depois outro, depois outro. Este, para mim, é o singelo ápice do filme, porque a partir de então os três caem numa discussão: se os postes eram fotossensíveis, aquela metáfora não prestava para o que se queria dizer.

__E afinal, por que eu gostei tanto desse filme barato? Pela metáfora.

__Mais que uma revolução de postes por efeito dominó, me tocou um ponto que, por analogia, é o que vivemos hoje. Nossas revoluções por minuto são baseadas em e-mails, spams, fowards. Exceto algumas marchas na Paulista, quem dá as caras e vai atrás de seus direitos, cobrando justiça e uma política que mais lhe convenha? Quase ninguém. O filme então, sem destacar mas destacando, ressalta o poder quase absoluto que a TV e a mídia em geral têm sobre as revoluções de hoje em dia. Alguém se lembra dos Fora-Collor? Não vi nenhum empresário (os reais prejudicados) sujando o terno. Aliás, esse "não vi" é modo de dizer, porque na época eu mal estava na segunda série, quando conheci o Eduardo, por ironia de época. E no ano da democracia, 84, eu nascia. Mais uma risada amarela de deus.

__Voltando. A revolução está nas telas, nos jornais, nas cédulas. Já o papel de verdadeiros pensadores, que poderiam mudar a história, são abafados pelos interesses dos poderosos como inclusive é mostrado no filme, pela depreciação do descreditado professor de História, revolucionário de adjetivo cassado.

__O efeito dominó da revolução mediática não oculta, porém, a forte referência que temos àquele velho ensinamento oriental: para mudar o mundo, é preciso antes de tudo mudar a si mesmo. Os outros postes se acendem por seu exemplo.

__E o filme termina em silêncio, com imagens de um anoitecer que vai acendendo aos poucos poste a poste.

__Feliz por ter saído do cinema com essa interpretação, fui empolgado para O Cheiro do Ralo.

__Em primeira instância, me desapontei. De fato, o filme, apesar da pouca verba, tem muita propaganda e o teor dele já é traduzido pelo trailler. Isso frustra quem busca surpresa. A edição da imagem me pareceu muito de filme de ação, pelo fato de que uma cena de conflito interno e aquela música triste poderiam ser suavizados, em vez de cortados bruscamente. Os pensamentos do personagem principal também seriam melhor aproveitados se fossem menos explícitos. Parecem que querem explicar o que ele está sentindo e garantir o entendimento do intertexto. Provavelmente pensaram no público massificado ao inserir aquelas narrações em off, que em certo momento irritam.

__Mas isso passa. Porque a mensagem podre que nos é passada também é divertida e "sarcáustica". (Sinopse tem aqui). É um cinismo contra o preço do ser-humano e a coisificação das pessoas. É sempre dinheiro, dinheiro, dinheiro que corrompe nossas tripas e faz o ralo feder. Ele vai à lanchonete ver a bunda, e a comida lhe faz mal, e o banheiro então passa a feder por causa do ralo, e aquele cheiro corrói seus pensamentos, o faz tornar inseguro quanto a si mesmo, e para fechar o ciclo, ela vai e olha a bunda. Louco para um dia poder comprá-la. Mas algo diz que ele começa a gostar dela. Só que ele impede seu sentimento, recusa a cervejinha após o expediente e pensa consigo mesmo:

__Eu quero pagar por ela, e não gostar dela.

__Ele acaba magoando-a e sua crise e alastra para com todo o seu círculo social.

__Expandindo o conceito simbólico para a sociedade, poderia ser entendido como o apodrecimento interno que cada um se deixa passar em virtude de mesquinharias, frieza e egoísmo para com as pessoas ao redor. Tudo tem um preço, inclusive o da segurança. O poder é afrodisíaco, diz Lourenço.

__Somos bundões.

__No final, quando ele finalmente consegue a bunda, é emocionante. (Você me oferece dinheiro para mostrar a bunda, e não percebe que eu estava louca para me entregar inteira?). Ele abraça o objeto de desejo e chora, chora, chora...

__Mas de novo quiseram amenizar o drama e cortaram o momento bem na hora que o filme convencia e aumentava a relação de custo-benefício. Ops! Olha eu falando de valores materiais...

__Mas vale a pena, sim.

__Volto para casa com a sensação de ser alguém mais simples, porém revolucionário, e também menos podre. O contexto de meus dia-a-dia destas últimas duas semanas suporta a tese.