16 de janeiro de 2006

O anjo ciclope.

__Toda noite de domingo eu busco companhia inteligente. Uma faísca para começar a semana. — E tal bate-papo tem seu preço: a solidão noturna; a esgueira taciturna. Ainda que sejam por meros minutos.
__Subo a rua da favela; mas quando o faço ainda é claro, no horário de verão. Fosse ou não, estaria movimentada, aparentemente inofensiva.
__Mas chega a hora de descer e tornar a atravessar o medo. E sempre a história se repete: mãe liga preocupada, eu aviso que ficarei mais um pouco, extrapolo até o limite das horas e peço ao amigo para abrir a porta de saída. Não, não vou ligar pra ela pedindo para me buscar. "Mas o que lhe custa ela vir te pegar aqui, que coisa?!" — Custa-me, e não lhe. Sigo o que devo fazer. São atos pequenos, arriscados, concordo, mas não sou eu o responsável por eles? E se eu for baleado? Cabe a mim as culpas, os dedos indicativos em riste e as lágrimas furiosas; cadeados de portão da próxima geração. Mas, e se eu morrer? Que caibam as dores culposas à carona dele não oferecida, ou à busca dela não realizada, e enfins.
__Que seja. Devo descer.
__— Cuidado, filho.
__— Cuidado, cara.
__— Sim, sim.
__— Sim, sim.

__Hoje, a lua está cheia. É uma noite linda pra se morrer. Ou se reviver.
__O escuro esconde o perigo. Na menor faísca se revela a sombra. O medo. Mas, também, o deslumbre.
__(Este é o motivo para ainda se acreditar no amor numa selva indignamente chamada de civilização.)
__Mas lá estás tu, cavaleiro. Teu amigo acaba de se despedir, fechar o portal que separa o particular do público — nota-se pelos tilintares metálicos de correias, cadeados, chaves e trincos — e agora, não resta outra saída, senão adrenalinar este sangue medroso e preparar-te para a pequena batalha olhos atentos, sem piscares, e passos metrados, quase sem pisares ou pesares que será mini odisséia psicológica.
__Mas hoje é diferente. A tua companheira roga como aura prateada. A noite é um gigante guerreiro que para ti, e somente para ti, prepara sua clava amedrontadora. Ou seu hálito romanceiro.
__Este ser tem um só olho. Um globo vivo, brilhante, visualmente paralizante, poeticamente onipotente. A noite é um ciclope, cujo fitar será a janela da verdade que guiará teu caminho por hoje. O dia é sem brilho, cru, insípido. O anjo sagrado irá iluminar os contornos que só tu vês, que só tu combates, Quixote ao quadrado.
__Segue uma história: foi durante as noites de lua cheia quando os homens da caverna foram à caça; sem o fogo de Prometeu, o farolete que salvava a esperança de bons tempos era o luar. Os animais tomavam formas, podiam ser enxergados; os buracos negros do solo, idem; as copas da árvores, móveis espantalhos, afugentavam mesmo as feras daquele hábitat. E desde tais registros o astro já mostrava seus podres. Hoje, ainda que o homem domine o fogo, utiliza-o a dois gumes (iluminação e guerra); mas ainda há os artistas que preferem a sugestão possível do luar à certeza calcinadora da chama.

__"Faze uma promessa: um dia, sereis três. Tu, ela e a Lua. Por hoje, o lugar ao teu lado desponta vazio. Mas uma guerreira há de caçar contigo! E neste dia nem o vento ousará soprar um cirro sequer, arriscando vos ofuscar a cena. Mas, cuidado, uma delas, das duas companhias, enciumar-se-á."

__Veja como o vento me respeita: parou de respirar! As nuvens pairam e a noite é quente como o dia, em plena calada. A bela astro-pérola é vaidosa. Gosta que lhe apreciem as curvas. E eu a degusto, assimilo; é minha bateria, minha fonte, de onde tirarei futuros soldados vocabulares. (Sendo o território guerrilhado o coração desejado.)

__"Cuidado! Larga dessa fascinação por ora, pois ainda estás frente à casa de teu amigo! E segue!"

__
Medo? Suor frio? Hei de enfrentá-lo! O suor se aquece, torna-se quente. Estou preparado. Vou.
__A rua desce escura, quase negra; uma igreja de quintal se fecha, um corcel capengando troca a marcha, um cavalo raquítico masca grama no fundo do pátio, uma esquina com boteco de família é ponto de encontro de domingueiros. Chego à avenida, de lanternas alaranjadas. Viro, continuo descendo. Outro boteco, mais cheio, mais violento, mais suspeito. Umas casinhas de favela de luxo fecham suas janelas, que dão à calçada descaradas; madeira velha e sem fechos. De um lado, isto; do outro, portões que invadem o espaço pedestre para comportar seus sedans setenta e cinco. Da rua são ouvidos os comerciais do fantasmagórico programa de domingo. A luz laranja incendeia os cortiçoes avançados. Então, chega o motivo daquilo que é o pânico maternal: a favela.
__Contornando um córrego de ratos, jardinada por gramas de meio metro que um dia serão mascadas pelos desesperados puxadores de carroça de cata-papelão, crianças brincam de dançar canções obcenas; adolescentes se rodeiam trocando telefones sem fio e meios-olhares de canto. Adultos, não mais que três juntos; ou estão no boteco, justificando suas vidas, ou à espreita de um perigo que eu não posso dizer. E o cheiro, ah, o cheiro! O perfume de Brasil! O pó que nem o tapete de asfalto cobriu pois o rosto dos oprimidos resgata!...
__Observam os espetáculos naturais? Inspiram-se no que é gratuito e de fácil acesso a todos? Ou denigrem os artistas dizendo que tais batalhas são luxos de vida boa? (Não é o que diriam seus padrinhos do MPB...)
__Passo pela favela. São apenas dois minutos, mas que arrastam-se pelo que vem após: penetro na rua, mais fina que viela; um portãozinho passagem para as drogas exige respeito: olho na rua, nunca nos olhos. Mas, como já aqui caminhara, olho à frente, de peito galináceo. O risco aguarda aí: nunca voltar a face é a lei que exprime o silêncio que se impõe durante a travessia. Porque, de três, uma: ou haverá alguém do portãozinho; ou da favela, no encalço ao furto; ou ninguém, revelando assim a minha insegurança (voltar a face por nada) e deixando à mostra tudo o que não se deve neste local: a desproteção.
__Viro novamente, e estou na rua de casa. Na rua que dorme uma praça comprida, esbelta, bem cuidada e diversa. O posto de saúde, morto; a pista de bocha, alagada; as árvores contorcidas, embaralham as frestas de luar; sim, não há até aqui poste iluminando. A sombra só surge depois que o bosque é passado.
__Um guarda-noturno em sua motoca faz escândalo com seu apito; que delícia é o silêncio sensível daqueles que dormem! Meus passos são notadamente perceptíveis por qualquer gato que pestaneje por todo o quarteirão. Até os casais que se escondem nas moitas (chamadas "banquinhos da praça") conseguem mais sigilo, e desaparecem, ou surgem do nada, sempre como se a noite permitisse existir na praça portais que a todo som engole. Quem diria, um motel frente à casa?
__E finalmente ela surge. Passo pelo campinho de futebol, olho trezentos e sessenta graus para conferir se estou realmente sozinho (apesar de sentir os olhares incômodos daquele casal embaixo da árvore) e entro. Paro; e penso.
__"Sim, anjo ciclope. És realmente protetor do amor. Seja lá que tipo for."
__A Lua inspiradora dissipa sua beleza aos casais fecundos, e a cidade se aquece, a começar pelos tecidos de pudor, a terminar pelos colchões, e a continuar por essências afora, flutuando como pólen.
__"Tu... merecerias esta noite. Pena que não estejas..."

__Abro a sacada e sento-me sentinela. Os últimos pares saem de seus esconderijos e voltam aos lares, olhando com estranheza e disfarce este espião que observa onipresente o palpitar da praça enluarada. Mas, na verdade, estou formando é um triângulo amoroso: meus dois olhos ao do cilope negro gigante.
__E veja só as nuvens algodoadas. Altocúmulus macios aos olhos.
__Lembro-me dos dias quando a mesma praça não se privilegiou de ter a pérola que faz no céu um brinco de diamante. Cirros, estratos, cúmulos... todas nimbus; eram iguais pela ausência de astros; cinzas ali, cinzas aqui... sem o que as diferenciasse. Os caçadores de formas se decepcionam em noites sem luar. Já como hoje, são um banquete ao interessado: de planas, ganham as mechas de prata em seus contornos e frestas; ganham forma, volume, cantos, margens; projetam presença; tornam-se vivas, como acontecia ao seres que habitavam esta mesma rua nos tempos da caverna. Meu vilão, porém, não é o animal; é o eclipse que os torna.

__O medo de todos se injustifica a quem flutua. Sob as formas das nuvens reveladas à luz de Lua a noite se aprofunda, enquanto me aprofundo em sonhos acordados. Depois, durmo. Durmo com o anjo. Durmo na certeza de sono calmo e protegido; acordarei com ninfas pela manhã; todas ansiando por serem desenhadas em meus papéis; cada uma um pedacinho do corpo com o qual sonharei daqui a pouco. E enquanto atravesso o primeiro, o segundo e os demais descansos, a noite caminha sem deixar rastros na civilização. E eu, em sono profundo, sonho imerso com a musa que é a aura, com a deusa que se metaforiza em pérola e que é a causa de toda a intuição de que existe um guardião que não me deixa afogar. Ela, a origem, está lá. Logicamente admirada por vários, indubitavelmente compreendida por poucos; mas unicamente inventada por mim.
__E a cada quatro semanas, o anjo ciclope projeta-a como um caleidoscópio.



Lava leva love, e velo, vá levá-la.

14 de janeiro de 2006

O Saara.

__Uma sombra serpenteia.

__Pra quem vê ao longe, é isso. Pro olhar próximo, é meu corpo caído, cambaleando.
__Arrasto-o arranhando cada membro. Levanto do chão, titubeando, nocauteado.
__Uma gota de suor, densa, quase só de sais, cai da testa.
__É a primeira há dias.
__Dou adeus.
__Energia é nada.
__O externo não oferece atração.

__Minha boca seca. Sem saliva. Sentidos derradeiros.
__Ranhuras internas, sabor da mucosa.
__Meus dedos, empoeirados. Minha face, áspera. A garganta clamando.

__Sinto meu esqueleto. A mais nu das formas humanas.
__Eu, arenoso. Raspam-se as articulações.
__Eu tento, eu tento.

__O sangue coagulado, num bombardear fraquejado e sem vontade.
__Desesperança é branca, amarela e laranja. Com mancha de sombra ao centro.

__Afundo meu pé até a canela na areia flamejante. Lanço a outra perna à frente.
__Meu corpo já não tem calor a dissipar. Foram-se o suor, as lágrimas, os gozos.
__Apenas ardo. O sangue arde. A pele é só ferida. E sem sentir.

__Mergulho os pés enquanto caminho na densa massa de fogo.
__Os músculos queimam duas vezes. Uma pelo sol impiedoso. Outra, pelo esforço que fazem: puxam a perna afundada nessa movediça, enquanto a outra, de apoio, sem apoio, torna-se a nova a ser resgatada.
__O arranhar do esforço muscular, lesionando-me em auto martírio.

__A cada passo profundo, cavo mais, penetrando-me na concha protetora. Ela é a salvação dos tolos.

__Do solo, uma mão agoniza. É só ela.
__Sou eu daqui a pouco. O clima me fagocita.

__Um lençol freático se debate à linha do horizonte. No varal a secar.
__Se debate ao vento. Mas não há vento. Não há refresco.

__A terra paga seu imposto ao rei do meio-dia. As últimas moedas, últimas gotas.
__O lençol, antes subsolo, antes nutrindo os seres, se dissipa acima do relevo, ao ar, dando adeus, prometendo ser mortalha insípida, um dia.

__Um punhado de areia fora pedra no passado. Todas as lápides do mundo me puxam ao inferno. Bebem a água, pagam ao sol, e me abandonam encostado numa pedra, que será areia no futuro.
__A Erosão dos deveres sociais tem injustamente o deus do amor embutido no nome.
__Porque me erodem. O porquê.
__Por quê?

__Terra asfalto. Pedras de escapamento. Túmulos de andares.
__E cadê Antares? A "Rival de Marte"?

__De Marte. À sombra da cidade do tudo pode. Milhões, e um vulto.
__O deserto da solidão. O Saara metropolitano.
__Vai não-vai, fica não-fica, estar sem estar, brincadeira do morto-vivo.
__Luzes piscando, batidas surdas, vozes mudas. Secura.

__Um velho rico, jardineiro, marinheiro. E é o lado que preferem não ver.
__Nem num lado, nem no outro, nem o do meio. Meu caminho é o do fundo.

__Camelando. Procura-se.

__Mas, espere. Aquilo ali não será...? Sim, deve ser! Sua sombra acolhedora, seu lago de saliva doce, seus frutos de reviver.
__Minha alma sorri. Eu decido ir até lá.

__Pernas, vamos, forcem-se um pouco mais! Pode ser que ela se vá!
__Coração! Acorde, coração! Preciso do seu sangue. Dê-me o cultivado de dentro desta caverna.
__Ei, tu. Estás vivo! Esquece esta dor. Lubrifica com a vontade teus últimos passos. Dela, sairás purificado.
__Olhos, foquem-na. Não a percam de vista. Ela está lá, atrás dali.
__Corpo, batalhão todo, avante!

__Eu estou chegando. Já estou perto. Quase... lá... ah!

__Nos últimos metros faltantes, a alegria explode cada célula, e me lanço de abraço a ela. Caio de olhos fechados, abraçando aquela maciez, tendo em meus braços todo um futuro, toda uma esperança, toda uma saída para escoar a energia que as lamúrias me parasitaram. Sorrio, caem lágrimas, completo-me. Um ninho de amor, uma raiz que nasce e germinará. Perco-me nestes sonhos acordados. E fico, no chão, na sombra, caído, feliz, sorridente, com as veias loucas para sentir o sangue fluir como antes.

__Opa. Meus braços queimam! Minha boca, minha boca! Está cheia de... ptf! O quê?...

__Água, água!

__Pedir por água é, além de inútil, arriscado. Os cristais de areia inundaram meus pulmões, preencheram a garganta, e agora sequer respirar consigo.
__O peito não tosse. Morreu. Temo descobrir o que foi então que abracei.
__Abro os olhos, e o horror me toma conta. Foi-se a sombra, foi-se o lago, foi-se seu corpo. Abracei o delírio. Beijei a insolação.

__Era tudo miragem.

__E não há mais poupar de energias. Os membros se estatelam ao chão, fracos, pedindo à terra um pouco mais de energia. Uma piedade, uma chance.

__E tudo que ouço é o vento solitário assoviando nos desgastes das rochas.

__O lapidar na lápide. Buscando uma saliva que refresque, que renove, que eu beba e que eu viva.

__Morto pelo oásis imaginário, no romantismo masturbado.


A lava lava.
Deserto queima.
Que venha a fênix.