27 de outubro de 2005

Sem re visão. Uma nova.

Eis-me novamente aqui.

Olá, solo. Olá, água. Olá, ferida. Façam-me doer a alma, pois preciso disso para me sentir ainda vivo. O meu desejo já não é mais meu guia. Tampouco meu conselheiro. Ele está engordando, envelhecendo, cobrindo-se, mumificando-se, até o dia que ele resolver, vinte anos mais tarde, acordar, correr até mim — não será necessário muito, garanto — e, como amigo que diz tudo na cara, fazer-me derreter as lágrimas que estancaram e amargaram no fundo dos olhos fechados, atados por opção.

Permitam-me o pudor. Eu aprendi a gostar dele. Ele sensibiliza. Como dizia Fernando Pessoa, o pudor está para a sensibilidade assim como o obstáculo para a energia. Permitam-me o pudor. Quero voltar a ficar vermelho de vergonha perante uma mulher desejada, dessas que não se vê todo dia nas ruas, mas sim no coração, quero ficar embaraçado ao perguntarem sobre o quê escrevo, não sobre a que sou pago, mas sim meus sonhos, quero poder imaginar ter filhos daqui quinze anos, desses baderneiros e que não merecem ter pais trabalhando o dia todo, enfim, eu quero querer. Nesse momento, eu não quero. Eu lembro querer. Eu lembro quantas vezes me apaixonei esperando o trem passar — muitas, por cinco segundos —, quantas vezes deixei escapar uma gotinha de lágrima no cinema naquela cena reconfortante — sendo apenas eu o herói do cinema, por sinal —, quantas vezes me senti o homem mais forte do mundo por poder responder com solicitude a uma pergunta de algum perdido na rua — eu lembro, inclusive muito longinquamente, de querer passar a vida ensinando e escrevendo, ensinando e escrevendo. São lembranças. Encaro como passado. Não podem ser passado. É isso que peço, meus amigos solo, água, e ferida. Sejam meus terapeutas por hoje, por essa noite, ou por quantas forem necessárias. Eu quero me curar. Eu quero voltar a ser o louco pelas coisas pequenas, ser o garoto do “isso passa”, ser o utópico reformado. Reformado por já ter um mínimo de experiência para não apenas dizer sem fazer, dos adolescentes. Eu, aqui em baixo, tento alcançar vôo. Não me façam subir, não me ajudem a levantar. Deixem-me. Eu aprendo. Ajudem-me não atrapalhando. Não quero gostar do sabor de meu rosto em sua lama, em seu fundo. Porque eu sei que, se for da outra forma, eu volto como prisioneiro de uma liberdade condicional. Lá em cima cortaram minha cabeça e deram-me um curativo. Quero sorrir para tais desumanos. Só que eles estão em maioria. Entende? Os policiais são maioria. Eu não sou um cidadão por natureza, eu não sou! Oh!...

Uma peneira para entrar numa editora. Disseram-me: responda ao teste psicológico, e respondi com 75% de “A”, 20% de “M”, 5% de “D” e zero de “S”. Seja lá o que for. É possível que alguém desconhecido me conheça mais que eu mesmo. Depois, disseram-me para escrever com letra de forma sobre qualquer tema. Creio que fui bem. A partir de então, começou o desespero. Tinha que, assim como os ouros vinte integrantes da dinâmica, responder o motivo de eu querer aquela empresa como meu objetivo. O filme é conhecido: “eu posso ser o primeiro”, para demonstrar iniciativa — eu prefiro ser o último, sempre, pois acredito no grande final e com orgulho —; e depois ouvi as mesmas barbáries, como “me falaram muito bem”, ou “é uma empresa que faz o que gosto”, ou “eu me identifico com a marca”, e por aí foi. Eu sabia que a minha resposta seria melhor que todas aquelas. Grande final, sim! Porém, o Claucio sedentário estava ativo. Eu te odeio, superego, eu te odeio. Comecei a tremer, de tão diferente que era; parecia que, da boca pra fora, nem eu mesmo acreditava no tal projeto que é um de meus sonhos, no meu futuro ideal e fora do comum que eu planejo todo dia quando acordo, no meu filho. O filho, a livro e a árvore, observando agora, parecem-me uma tríplice que, metaforicamente, diz: realize um grande sonho, faça-o ser uma grande história e faça-a dar frutos para os que virão. Por descobrir essa relação, deveria me orgulhar. Mas não. Eu te odeio, Claucio sedentário, Claucio cômodo. Hoje, enquanto pago tributos a você, continua a ser meu rei. Mas a prole se revolta, ouça o que eu digo. E quando tiver o poder das asas, me vingarei pelos olhares de pena que senti enquanto eu não transmitia segurança naquelas que pareciam palavras inventadas. A sensação calou-me pelo resto do processo. Não opinei, não argumentei, não apareci. Eis agora a grande sacada: se a minha redação me salvar, será um sinal de que seu poder se corromperá. Caso contrário, é apenas temporário. Continue correndo atrás do rabo, enquanto eu me sento. Num futuro, você me assistirá calado, da cova sepulto. Escreva isso. Ou melhor, deixe que eu escrevo.

O fracasso no processo pela empresa me fez ter um clarão platônico na caverna das sombras. Venha cá, Claucio colegial, e diga sobre o que me refiro. Diga aquilo que é relacionado ao fato de eu não querer ser hospitalizado.

“Eu perderia a corrida ajudando o manco a correr. Mas carregando, nunca. Quando os colegas de classe vinham a mim perguntando como se resolvia tal questão, com o objetivo de fato de aprender, era solícito até fazer o cara desenhar a fórmula de traz pra frente. Dava-me uma leve sensação de “cidadania” quando os via sorrir por ter alcançado o mínimo para não repetir de ano. Eu ficava feliz por compartilhar, secretamente, de seus sucessos. Mas o mesmo não ocorria com os encostadores; aqueles que se juntam ao seu grupo com o olho gordo de quem não faz a mínima pelo real aprender. Infelizmente, estes são em maior número que aqueles. Eu era um nerd, concordo. E parecia que estes não tinham ego suficiente para pedirem ajuda ou serem ensinados por mim. Eu respondia à altura, com desdém. Aí, claro, a imagem era a do nerd carrancudo, orgulhoso, convencido. Somente um punhadinho podia comprovar o contrário. Mas estamos numa democracia, na sociedade do espiral do silêncio, do grito. Logo, saí de lá com injustiça. Mas tudo bem, eu, no fundo, tinha pena. Mudei o meu curso e esqueci o pessoal. Ficaram apenas alguns na memória. Marcada mesmo foi a boa experiência de ter ensinado alguém. Acredito na teoria do caos, logo, sei que fiz diferença. Sei que fiz.”

Sim, sim. Inclusive, com o desempenho na dinâmica, isso aí me veio à mente. Tudo isso. Eu lembrei da minha indignação quanto ao modelo emburrecedor de ensino, quanto ao excesso de informação que temos que absorver osmoticamente, quanto à quase obrigação de se escolher um futuro aos 17 anos de idade no vestibular, e etc. Aí, me veio a imagem de um professor que ensina por acreditar na revolução, e não no professor que recebe pra ser professor. — Contei isso à minha mãe, e decidi então nunca mais lhe revelar meus planos utópicos. Ela enterrou os pés no chão. O meu chão é movediço, não posso pedir socorro a ela. — E então me pareceu ser o caminho ensinar e escrever, escrever e ensinar; e tais atividades permitiriam muito bem encaixar aquele “projeto pessoal”, do filho, do livro e da árvore, nos planos. — Mas... por onde começar? Acabo de entrar na reta final para me tornar um ninguém com diploma. Um diploma que está escrito a ouro todas as profissões que não quero seguir — mesmo sabendo que são essas as únicas que sei. Fazer jornalismo? Fazer pós? Aos 21 anos? Não é óbvio que sim. Mal terminei a faculdade, e já perguntaram ao Claucio sedentário o que ele fará no ano que vem.

“Olha, veja bem, eu pretendo seguir em frente com minha idéia de...”

“Idéia, tá maluco? Não esqueça que eu estou vivo!” (som de “tum tum, tum tum, tum tum”.)

“O que é esse ruído de tambor, Claucio-sedentário?”

“Não é nada não” (abafando com o terno), “não é nada. Só uma palpitação do coração, coisa que passa.”

E assim, os sonhos ficam dentro de um bolso, menores que a carteira. Ignorância é força. Quisera eu ser forte o suficiente para ser fraco. É preciso muita força para enxergar que, terminando esse processo de “ser alguém na vida”, apenas acrescentei um número aos ninguéns.

“Mas ser professor dá dinheiro? Escrever dá dinheiro? O brasileiro não lê! Você tem que se adaptar à realidade! Tudo o que eu quero é que cada um tenha seu dinheiro logo, ganhe bem, porque afinal vocês são inteligentes, com uma poupança, e, sim, ter uma vida normal!” — Eis o amor de mãe. Não duvidaria se eu tivesse que pagar o financiamento do quarto alugado, das roupas compradas, da escola, etc. (Eu até pagaria.) Quero um toque de arte na minha rotina. Pagaria com o lucro da arte. Se é que arte, num país como o que força ensino, tem arte na cesta básica. No meu quadro de vida — melhor que currículo — tem umas anotações e diversos diplomas; mas nenhuma uma cor. Nenhuma. Eu enxergo o espermatozóide — meu filho — fecundando o óvulo, eu ouço o bebê chorar, eu sinto seu cheirinho, eu sinto sua suavidade, mas o Claucio-sedentário está prestes a me castrar. Lá vem ele com a foice da afobação megalomaníaca da graduação. Ele e seus suportes, acessórios. Sobram qualidades organizacionais; faltam qualidades orgânicas.

Dizem que aniversário traz inferno astral. Esse deve ser o meu. Estranha sensação de de javu psicológico. Não é mesmo, solo, água, ferida? Todas essas palavras anteriores saíram de minha mente — as palavras, não as idéias — e deixaram-me com o eco. Mas, lembrando, são sensações conhecidas. Já passei por isso, né, água, solo, ferida, poço? Façam-me voar, me enlouqueçam de vez! O veneno é meu antídoto.

Tive um sonho. Um sonho muito belo, porém triste, por ser realidade. Sonhei porque admirei por muito tempo a beleza de uma foto. A beleza de certa mulher numa foto. Eis que no sonho eu admiro um roseiral que é todo feito de rosas vermelhas, exceto por duas brancas, posicionadas ao centro. Apaixonei-me pelas rosas brancas, que eram diferentes de todo o resto, que se destacavam por sua leveza tonal, que impossibilitavam o desvio do meu olhar a outra rosa qualquer.

Mas, aos poucos, adoeci. A fotografia já não me bastava. Eu desejava tocar as rosas brancas, poder acariciar meu rosto com suas pétalas, poder dialogar com seus espinhos e dedicar as mais belas canções àqueles dois objetos de atenção apaixonada. Então, pelo desejo de estar consigo, mergulhei na foto e subitamente estava na estrada que corria na tangente ao roseiral. Saí do percurso dela e me dirigi às flores. E então eu pude perceber o quão tolo tinha sido por delirar com aquela foto. Apenas a foto, quero dizer.

O vento arfava as pétalas não só das brancas, mas de todas as rosas, de tal modo que com a simples brisa eu podia sentir o seu perfume. Era o perfume da tranqüilidade, da completude, da idéia etérea e presente. Sensações que, mesmo com o arranhar de seus espinhos, não se podia deixar de sentir. As rosas também eram suaves ao toque; riscavam os dedos quando na haste, porém pediam desculpas com suavidade e maciez das pétalas. Quisera eu que os lençóis de todas as minhas noites fossem feitas de pétalas de rosas. Quisera eu também ouvir todos os dias antes de adormecer o som produzido pelo chacoalhar do roseiral; sua voz que soa, aos meus ouvidos, como um calmante sereno e aveludado. Quisera eu, por fim, que meu quarto fosse perfumado com o aroma delicado daquelas flores de meu sonho. Embebedar-me-ia nas sensações produzidas pelo conjunto de obras de arte que cada rosa compunha, pois percebi, com o mergulhar da foto, que não só do sentido visão sobrevive uma paixão. Que aquelas rosas brancas só são tão belas em relação à composição que formam com o restante vermelho. E que esse restante é indigno de ser chamado restante, pois apenas duas rosas brancas não produziriam o torpor romântico que somente o conjunto da obra faria. Uma foto apenas retrata o milésimo de segundo de um momento no passado; porém, os sentidos somente são envolvidos se este momento não se encerrar no passado, ou na pura somente lembrança, ou, pior ainda, na imaginação de um coração tímido.

E que faca de dois gumes tornou-se esta visão, com a análise deprimida de uma mente confusa. Pois se por um lado o sinestésico sonho infere que eu não deva me contentar com a lembrança e pensamento, ou seja, que eu deva experimentar as sensações do toque suave de sua pele, do perfume fresco de seus cabelos, da musicalidade reconfortante de sua voz e, sim, da beleza artística de suas formas, principalmente a de suas duas rosas brancas, por outro lado o sonho não representa o sentido faltante: o paladar de seu beijo.

O inconsciente zomba de mim. Tira sarro do que fiz e do que não fiz; aponta o futuro espelhando o passado, e eu, aqui, escrevendo como terapia, na tentativa de descompressão viciosa — o escrever como fuga, o escrever como cura, o escrever como negação à realidade. São diversas vozes em meu estado inquieto do presente.

“E te achas diferente. O homem dissipa sua desgraça criando desgraças imaginárias”.

“A arte, sim, a arte! O teatro foi o primeiro sopro que o homem inventou para se proteger da doença da angústia.”

“Oras! Tudo que consegui batendo a cabeça na parede foram galos.”

“Cale-se. As tragédias de cada são sempre de uma profunda banalidade para os outros.”

“Ouve-me: o que te separa, tu, de todo esse roseiral, ou melhor, de todas as sensações, sejam, flores, sejam montanhas, é a angústia.”

“Não ouviram a súplica inicial deste ser? Não ajudem-no a levantar. Deixem-no aprender com a sombria tristeza interior. Se chorar pelo sol à noite, não verá as estrelas.”

“Está certo. Não há motivos para percorrer o céu a procura de sua estrela. Põe-a lá.”




A lava lava, e sua força lança faíscas eternas ao céu.

As frases aspadas foram manipuladas como num diálogo entre os citadores Anne Hébert, Raymond Queneau, Alfred de Musset, Vergílio Ferreira, Jean Barrault, Rabindranath Tagore e Oscar Wilde, todas retiradas do site "Citador", vistas aqui.

18 de outubro de 2005

Campo magnético.

Por que magnético? O que seria um olhar magnético? Seria um olhar que exerce forte e inexplicável atração; um olhar encantador; um olhar fascinante? Seria. — Mas até aí, nada de novo; isso tem no dicionário. — Lá vou eu, porque as palavras têm dois sentidos: o usual-convencional e o pessoal-intransferível. Não ficarei no comum. Minha admiração não é comum. Tampouco ela é recente. Vamos ao pessoal.


Lembro do primeiro ano colegial, das conversas dos moleques.


“A Fulana é interessante por que é assim; a Ciclana é bonitinha porque é assado. Mas o olhar daquela...”. — A opinião, sempre com aquelas reticências que incompletavam a frase. Era o vazio, o silêncio de quem não soube dizer.

Ou melhor, o silêncio de quem teria vergonha de dizer e comparar os olhos dela àquilo que lhe veio à mente. Talvez não compreenderiam, e guardou consigo a associação. A associação e também a lembrança, de que seus olhos eram como dois buracos negros.


Guardou consigo porque não queria ter de explicar o que eram buracos negros.


“São regiões do universo onde qualquer corpo que nelas cair, nunca conseguirá sair. É um mergulho sem volta. Eis a semelhança com seus olhos. Uma vez olhado, nunca esquecido. De todo o universo, impossível desviar.”


Alguns anos depois, quando achou que tinha outros olhos, veio aquele par, novamente e ao acaso, aprisioná-lo. Achou que tinha amadurecido. De repente, viu-se como o menino de anos atrás.


Ei! Mas isso não se amadurece. É atemporal. É único. Porque algo não mudara. Não mudara aquela leveza, nem aquela icógnita, nem aquela escuridão misteriosa e, principalmente, magnética.


“Decifra-me. Ou te devoro.”


Socorro, me deparei com eles! ... — Mas... não me salve agora.


De todo o universo, impossível desviar. Impossível querer desviar. Mas, também, é impossível não querer, neles, todo dia mergulhar.







A lava lava. Queimar-me-ei?