27 de fevereiro de 2005

Não avisaram na embalagem que o corpo era frágil

OU: "O Contrário do Que Se Sabe."

[Inocêncio] — É tudo culpa da propaganda, não acham?

Inocêncio estava desiludido. Tinha acabado de chegar à mesa onde estavam sentados seus amigos. Ele mesmo os tinha chamado, para conversar abertamente e talvez para servir-lhe de desabafo, terapia. Freud foi o que mais gostou da idéia. Foi direto ao assunto, dizendo o porquê do pedido, da não permissão de namorada como acompanhantes daquela rodada de bar, da escolha do local afastado dos pontos mais badalados da cidade grande e, por fim, de sua tristeza.

[Jesus] — É, faz tempo que usam o propagare para fins perversos. Não que eu, você ou ele, assim como todos os humanos comuns, não tenhamos suas quedas às coisas do mundo. Ninguém falou que ter dinheiro é ruim. Mas falo por mim, que fico puto quando usam as minhas palavras pra vender coisas, e tudo isso sem ganhar um nada por direitos autorais.

[Inocêncio] — É, mas estou falando do meu caso. — Inocêncio não gosta quando, num momento de dor, levam a conversa para outros rumos. — Estou falando desse eterno engano em que caímos. Dessa fé. Pô, fé é uma merda. Mais faz sofrer do que alivia. E é tudo culpa da propaganda.

[Nietzsche] — Mas o que tem a ver sua operação com a propaganda? Se você vai ter que operar, vai ter que operar!

[Inocêncio] — Sim! Sim! Mas, porra, justo eu!? Justo eu, que sempre acreditei que escovar 5 vezes ao dia os dentes com a pasta Proteção Total iria deixar-me com dentes brancos, sorrir e conquistar uma modelo fútil. Justo eu, que comprava as camisetas descoladas para poder pegar as meninas, como aparecia na revista. Justo eu, que sempre comi bem, sem exagerar nas porcariadas, moderando nas bebidas, eu que acreditei até nos médicos, para ter corpo forte e saudável e viver jovialmente como os caras dos filmes, que são jovens e saem com garotas naquele naipe. Eu deveria ser imortal. Mas não.

[Freud] — Que saco! Você leva tudo como fim o sexo! Você acha que todos nós vivemos em função do sexo?

[Buda] — Pare de gritar com ele, oras. O cara já está sofrendo o suficiente cortar algumas delícias do cardápio e por não comer tudo que eu como, há há há.

[Inocêncio] — É por isso que você é gordo desse jeito.

[Buda] — Eu já estou careca de saber, filhão! Há há há! Não sabia que uma das melhores maneiras de não ficar doente é não ir ao médico? Pobre criança.

[Jesus] — Que criança o quê, deixa ele falar, vai. Deixa ele falar, pelo menos comigo.

[Buda] — Mas por que pelo menos com você?

[Jesus] — Por que deixai vir a mim as criancinhas!

[Freud] — Há há há!

[Nietzsche] — Hó hó hó!

[Inocêncio] — Ela tem é uma só!

[Bud@] — uahuhauahuahauhaua

[D. Neves] — Tchê tchê tchê tchê tchê.

[Inocêncio] — Adoro as piadas cristãs. Essa foi foda.

[Freud] — Tô falando que você vê sexo em tudo.

[Jesus] — Ai ai...

Silêncio.

[Inocêncio] — Então.

[Nietzsche] — Pois é.

[Inocêncio] — Ainda bem que ninguém aqui é padre.

[Buda] — Por quê?

[Inocêncio] — Porque senão o Jesus teria que se confessar.

[Jesus] — Eu por quê?

[Inocêncio] — A sua piada foi pecadora.

[Jesus] — Por quê?

[Inocêncio] — Porque ela foi foda! Há há há!

Silêncio.

[Jesus] — Ai ai... — Suspiro.

[Inocêncio] — Tá dolorido?

[Jesus] — Não... só estou pregadão.

[Inocêncio] — Ah...

Silêncio.

[Buda] — Pffffff! Huahuahua! Pregadão, sacou, sacou? Ótima piada, Jê!

[Jesus] — Eu, fazendo piada? Cruzes!

[Nietzsche] — Hó hó hó!

[Inocêncio] — Quico, Quico!

[Quico] — Há há há!

[Freud] — He he he, a gente tem que sair mais vezes. Toda vez que o Jesus bebe vinho ele fica falando besteira.

[Jesus] — E ainda por cima tentam me entender! Há há, eu já falei pra ignorarem o que eu digo em certas circunstâncias, tss.

[Inocêncio] — É, mas faz milianos que não te ouvem. É foda... Mas, meu, por que será que médico se gaba tanto de ser saudável? O meu disse que quando era jovem os amigos zoavam com ele por não beber, e que hoje ele é “feliz por não ter nenhum problema”. Pô, mas eu olho praquele cara, que casou com vinte anos, ele não curtiu...

[Freud] — ...as orgias, certo? Não era isso que você ia falar? Seu fútil.

[Buda] — Pára de falar assim. Ou vai me dizer que aos vinte anos você pensava em construir uma carreira?

[Freud] — Mas não é só sexo, gente!

[Nietzsche] — Eu estou com o Freud. A vida não é só sexo. Tem o amor, tem Deus olhando pela gente, tem tudo isso. Tudo vale a pena nesse mundo, é pelas pequenas coisas que a gente vive feliz. Inocêncio, vai por mim: te cuida como o médico disse...

[Buda] — E vá para o céu viver com gente velha, chata e crente. Caralho, deixa o cara viver! Que médico que nada, vai e bebe, fica alegre e aproveite o que o seu cérebro não permite na rotina.

[Nietzsche] — Como você é mundano, seu glutão!

[Buda] — Sou mesmo, hé hé, adoro os prazeres da vida, sou materialista e não nego.

[Inocêncio] — Tá, chega, onde é o banheiro?

[Jesus] — Sei lá. Pergunta.

[Inocêncio] — Perguntar pra quem?

[Jesus] — Quem tem boca vai à Roma.

Inocêncio está definido como Volto Logo.

[Jesus] — Orwell, você está quieto.

[Orwell] — Estou só observando...

[Buda] — Mas sabe... eu acho que o Inocêncio tem razão, quanto à propaganda e essa desilusão.

[Freud] — Vai falar de sexo de novo?

[Buda] — Pára de me reprimir! Pô, é sério. A mídia é o quarto poder. A mídia se compra. Logo, quem tem grana convence qualquer um.

[Orwell] — Besteira.

[Buda] — Como assim, besteira?

[Orwell] — Você acha que as pessoas são burras de aceitarem qualquer coisa? O ser humano é inteligente, e você está ficando louco.

[Jesus] — Mas você confia nas pessoas?

[Orwell] — Claro que sim! E outra: o indivíduo é livre pra mudar o que quiser: política, jornalismo, o mundo... eu tenho uma utopia. Vocês não?

Silêncio.

[Jesus] —Você defende a boa vontade das pessoas. Mas olha pra mim, olha pro meu caso. Não acha que a humanidade é uma interminável brincadeira do telefone-sem-fio? Daquelas que um diz uma mensagem, aí vão passando de ouvido em ouvido?

[Orwell] — Como assim?

[Jesus] — O que eu disse há muito tempo foi sendo passado pelas gerações, e algumas informações foram perdidas, alterando a compreensão de cada um. E no telefone-sem-fio não tem sempre um estraga-brincadeira que muda a frase por completo? Então. Fizeram isso comigo. Mas a diferença é que, como a brincadeira não termina, ninguém tem a chance de olhar pra trás e perguntar pra mim a frase original – e, assim, perceber que tem coisa errada aí.

[Buda] — Você pensa demais.

[Orwell] — Deixa ele pensar. Pensar é o princípio da sabedoria. Quem não pensa é fraco.

[Nietzsche] — Mas não adianta nada pensar. No fim, pensando ou não, só o Senhor vai punir ou gratificar. Ele, sim, é o poder, e o único.

[Orwell] — Sim. Ele é onipresente.

[Buda] — E também a propaganda, oras. Porque quando ela mexe com nossos desejos de ter saúde, ter status, ter segurança, sexo também, amor, conquista e, principalmente, poder, você vai dormir com os estímulos guardados na cabeça, no inconsciente, e aquela associação de que somente com tal produto você irá alcançar sucesso te perturbará a vida toda. O que você acha, Freud?

[Freud] — Bem... na verdade, não tinha pensado sobre isso ainda. Mas, não sei, acho que as pessoas compram racionalmente.

[Buda] — Se você for um técnico, talvez. Mas isso não é nada. É impossível ser alguém livre de pré-conceitos. A gente é criado de um jeito e fica tudo guardado na nossa cabeça!

[Jesus] — Mas eu nunca quis vestir o terno caro de luxo. E nunca tive problemas com mulheres, mesmo assim.

[Buda] — Ah, mas você só pegava putinhas, há há há.

[Jesus] — He he he, sacanagem. Não fala assim da Má.

[Buda] — E você, acha que é escolha sua ser largadão, descoladão, com essa barba por fazer? Que nada! Aposto que você associou, quando era criança, de que os romanos e seus trajes de poder eram símbolos maus.

[Freud] — Mas depois a gente desenvolve a razão, oras!

[Buda] — Mas com base no que você aprendeu!

[Nietzsche] — Que viagem!

[Jesus] — Calma, calma, não criemos pânico.

[Inocêncio] — Cheguei, galera.

[Buda] — A gente tem que assumir que é tudo isso: mesquinhos, interesseiros, individualistas e sonhadores. Somos todos um bando de Inocêncios.

[Inocêncio] — Que que tem eu aí?

[Jesus] — Nada. Vamos então brindar ao Inocêncio, por ser alguém que assume seus defeitos!

[Inocêncio] — Mas, porra, eu não posso beber.

[Nietzsche] — Ah, vai, só um golinho. Você precisa somente é conhecer os seus limites. Todo ser humano tem seu limite. É só não ultrapassá-lo.

[Buda] — Se bem que a gente nunca vai descobrir qual é se não ir sempre à frente.

[Inocêncio] — Como diria os mafiosos do whisky, quando assaltam alguém e dizem para não olhar pra trás, pois, do contrário, atiram. Vocês sabem o que eles dizem?

[Jesus] — Não.

[Inocêncio] — Keep Walking! Há há há!

Silêncio.

[Jesus] — Enfim. Vamos brindar então ao humor sempre presente.

[Todos] — Um brinde!

[Buda] — Ei, Inocêncio, você brindou e não vai beber?

[Inocêncio] — Foi um brinde só simbólico. Não posso beber. Por quê?

[Buda] — Porque serão sete anos sem meter! Há há há!

[Freud] — Por que você foi falar...

[Inocêncio] — Vou perguntar ao garçom se ele tem água pra eu poder beber, pra não ficar sete anos... Garçom!

[Dionísio] — Pois não?

[Inocêncio] — Tem água?

[Dionísio] — Não. Aqui só vende bebida alcoólica.

[Inocêncio] — Então traz vinho. Jesus, você consegue transformar vinho em água?

[Jesus] — Pô, que galera mal acostumada.

[Freud] — Tô vendo que você vai ter que abrir uma exceção hoje, Inocêncio. Bebe só um gole. Isso.

[Dionísio] — Senhor, creio informar que nossas câmeras flagaram você roubando o saleiro da mesa. Por favor, devolva.

[Orwell] — Se ferrou, Inocêncio. Eles estão levando muito a sério essa história de câmeras por todos os lados.

[Buda] — Roubando, hein? E depois sou eu que sou materialista.

[Jesus] — Por falar nisso, gente, eu vou saindo, porque logo começa o Big Brother.

[Buda] — Você assiste essa porcaria?

[Jesus] — Ah... é que gosto de ter a sensação de poder olhar a todos ao mesmo tempo.

[Freud] — E eu vou indo porque vai começar o Smallville. Nietzsche, quer vir comigo?

[Nietzsche] — Não, valeu. Não curto muito esse negócio de Super-Homem.

[Jesus] — Garçom, traz a conta?

[Dionísio] — Sim senhor.

[Jesus] — Odeio quando me chamam de senhor. Que coisa mais feudal, “servo”, “senhor”. Eu só tenho 33 anos!

[Freud] — Sossega, Jê. Vamos rachar?

[Jesus] — Sim. Eu calculo. Tenho experiência em dividir as coisas.

[Buda] — Não, podem deixar que eu pago tudo. Ver meus amigos alegres não tem preço.

[Nietzsche] — Beleeeza! Então, até mais, galera, que eu também vou indo, pra não perder a missa. E Inocêncio, siga as dicas do médico. É para seu bem, não para seu mal.

[Inocêncio] — Bem, mal... é tudo relativo.

[Nietzsche] — Não diga isso. Até mais.

[Jesus] — Até mais, e reze por mim. Tô indo também. Amanhã, todo mundo no MSN?

[Todos] — Beleza.

[Freud] — Também vou. Tchau.

[Buda] — Me dá carona? Fiquei duro.

Silêncio. Inocêncio e Orwell estão sentados.

Mais silêncio. Orwell termina o copo e olha ao infinito, mas na direção de Inocêncio.

[Orwell] — Inocêncio...

[Inocêncio] — Hum?

[Orwell] — Eu te amo.

Silêncio.

[Inocêncio] — Hum.

Dionísio, elegantemente, ofereceu mais uma rodada.

2 de fevereiro de 2005

Casas de Intolerância.

Voltava da noite que ficará memorizada. O que mais poderia querer, além de tudo aquilo por apenas vinte palavras? — Exatamente! Nem três minutos, e o encabulado... ao som de muito rock no ouvido. Fear of The Dark, Crazy Train e outras que não lembro, tocadas com perfeição pela banda cover.

Voltava. Era cerca de cinco da matina, e eu voltava, a presenciar o sol clareando o céu, e sentindo os ventos frios e calmos da manhã, a pé pelas ruas escuras e sujas de Pinheiros, ruma ao Largo da Batata esperar pelo ônibus da minha Odisséia. Então, passei em frente a uma “casa de tolerância” mais conhecida como puteiro e não pude deixar de viajar para dentro daquele ambiente de cores néons e ritmos musicais pornógrafos.

Será que é por ser de escorpião? Ou será resultado à aversão ao mundo limpinho — fisicamente e moralmente — da faculdade, da empresa, da “realidade”? Seja o que for, eu tenho essa atração por locais sujos, e vejo uma aura filosófica e não sei o quê nos becos com lixo, bandidos e ratos. Apesar de odiar ratos.

Essa minha viagem foi relembrada, hoje, porque li uma entrevista sobre amor e casamento entre turistas e prostitutas. — Veja em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc3101200514.htm — E a entrevista, não sei bem o porquê, me comoveu. A história de sucesso, a história de fracasso, todas comoveram-me. Algumas por sustento? Outras por gosto? (sim, há). Outras, ainda, por escravidão? A essas, sou contra a prostituição. (Se bem que a gente já se prostitui por um pedaço de pano, um calçado de marca ou um amor de ascensão — todos escravos, do desejo.)

A entrevista também me fez lembrar de uma discussão cujo tema, o trabalho “das colegas”, fora ocultado perante meu avô conservador, e que este, ao perceber o que dizíamos, repreendeu com seu olhar cristão. “Mas a prostituta é umas das mais antigas profissões! O que Jesus, aquele esquerdista, que por sinal é seu Senhor, diria sobre elas?” — pensei.

Aí leio uma matéria e vejo que os motéis fazem muito sucesso na hora do almoço: para executivos e outros membros corporativos. Eles ficam 30 minutos, 40... e voltam às suas mesas. Ambos da mesma empresa, muitas vezes.

E em “Pantaleón e As Visitadoras”, de Mário Vargas Llosa (recomendo), a história narra como que o Exército peruano (acho) na Mata Amazônica fez para amenizar os anseios violentos de suas centenas de soldados: com dezenas de quengas, todas com um processo de logística exímio para atender a tamanha demanda.

E o que esse três parágrafos têm a ver com os anteriores? — E é aí que entra a minha defesa da prostituição (acima dos 18 e por livre arbítrio). — No exército, era controle; no motel, era saída; e na história; a presença. No exército, o uso de seus serviços era necessário, pois quem suportaria conviver anos sem a presença feminina, e ainda por cima, ter que dormir todos os dias junto a outros machos mal lavados? Eles ficavam nervosos, como ficavam! E eram putas as salvadoras; não só dos homens, que se transformavam nos mais carinhosos seres, mesmo por meia hora, mas também para a chefia que analisava friamente o contexto daquele pequeno meio social. Era necessário.

E quanto ao motel? Uma vez dentro da empresa, do ganha-pão, pisamos como celibatários e reprimimos nossos desejos em nome da burocracia, das regras corporativas, do instinto coletivo de imposição de seriedade. Até os estudiosos de Recursos Humanos têm aula sobre as prisões psíquicas nas empresas; e Freud resumia muitas coisas à repreensão sexual. — Novamente, temos um microespaço social, onde devemos ser católicos e que, por isso mesmo, alimentamos nossa necessidade acumulada dia após dia por pirar, por dar-se o luxo de ser irracional, por comer-mos uns aos outros. E aquele motel é feito para quando o desejo de burlar o sistema for mais forte, bater sem igual à porta querendo sair, para os felizardos que encontrarem alguém que seja motivo de generalizações sobre o comportamento sexual: ou seja, o casal que quer foder atrás do muro da igreja; e que provavelmente serão ícone de outros libertinos. Em ambos os casos, tanto no exército quanto na empresa, são impulsos sexuais que precisam escoar, e cada situação pedirá uma resolução.

Mas, melhor dizendo: pseudo-libertinos. (Pode soar como generalização).

Quanto à presença da história, uso-o como exemplo de que a prostituição sempre foi necessária à conservação de nossa espécie. Evita stress de testículo e, em menor escala, o stress da gruta com teias. Quantas guerras não teriam ocorrido se os imperadores não tivessem à sua disposição os serviços de suas concubinas? Afinal, sexo relaxa. E, inclusive, na cidade imaginária de George Orwell, em 1984, o sexo era proibido porque era um meio de controlar os anseios das pessoas e direcioná-los ao ódio e à expressão ululante contra as forças inimigas. Mais ou menos o que as empresas fazem (em outro sentido; e não espero que ninguém me entenda, neste ponto). — Mas como na Mata Amazônica sequer havia inimigos...

Eu olho para a acompanhante e não vejo mais o tal mal. Não queria dizer isso explicitamente, mas às vezes “investimos” em roupa, carro, perfume, gel, maquiagem, saltos, cirurgias, sofrimentos, mas a recompensa só vem a prazo, sem a correção inflacionária ou os juros inclusos. Enquanto isso, mulheres e homens a todos os preços estão esperando pela solicitação de serviço.

Sim, eu sei que há o amor, que é o quê diferencial. Mas sei também que somos iludidos por nós mesmos sobre as impressões causadas pelo nosso “amor” comparadas às impressões que o jornalismo, a propaganda e a tendência do verão nos fazem. É o quarto poder, desculpe; impossível estar alheio. Até os animais fazem isso, ao entregarem seus corpos e vidas aos mais poderosos (que, claro, é uma questão de critério; e também sobrevivência).

E que mal há em ser prostituta/o? Algumas/alguns saem até mais barato, tratam melhor, etc. — Mas o quê? Você acha efêmero, mundano, vazio e sem sabor? Mas afinal, de onde vem o sabor? E o que é mais efêmero que as impressões que causamos para nos seduzirmos? Essas nossas ilusões que sempre precisam ser alimentadas. Também não são efêmeras?

Não sei bem como explicar. Mas certa noite eu sonhei que visitava um puteiro, e lembro-me como se fosse real a minha admiração pelo local. Pequeno, mas aconchegante. E, com a garota que me seduziu, comecei a puxar conversa. Dizia que me sentia bem entre os renegados, os marginalizados da sociedade. Que escritores como eu (eu o era no sonho; porém, escritor de aluguel) eram como putas mentais. Enquanto elas vendiam o corpo e podiam deixar a mente intocada, eu vendia minha mente, fazendo com o corpo somente o que eu queria. Que quem vende seu talento ou se entrega à força capital é igualmente prostituta; mas que, porém, a moral só condena um dos lados. Prostitutas eram o yin do meu yang. Ou ao contrário, talvez. Falei que todos fazemos por grana ou poder — quase todos, mas não conheço ainda exceções —, e que eu tinha abandonado meu curso natural de ascensão na empresa porque não queria tornar-me um gerente ou diretor com muita grana e pouco tempo para mim mesmo. Mas de que adiantaria, se de qualquer forma eu estaria vendendo parte de mim? Que diferença faz eu vender minha bunda à cadeira, meu rim ao mercado negro, minhas idéias à corrupção humana ou o meu pau à senhora viúva? E no Brasil, onde terceiro setor não paga sequer meu aluguel? Disse também que, mesmo sabendo que elas ali estão a trabalho, eu acredito que o amor brote dos mais áridos terrenos; e que, veja só o oportunismo desse fraco piadista, veja que a palavra ‘amor’ está presente na ‘amoral’. E disse que achava bela aquela coincidência do Português.

A minha acompanhante se emocionou com a franqueza; e mesmo dizendo que estava de retirada, pois o barman avisara sobre um cliente interessado, mesmo assim eu tinha percebido que, encarando-a como parte natural de uma sociedade carente — nem nata, nem bactéria —, eu tinha ganho algo que dinheiro algum pagaria.

E no sonho ainda, a partir daquele dia eu não me dirigia a garotas, nos locais de encontro massivo, com a intenção de conquistá-las; e sim subvertê-las, envenená-las. — Já aquele e outros prostíbulos tornaram-se o meu ponto de encontro com algumas amizades. Enquanto assistia às pessoas pagando por saídas, uma conversa ali e outra aqui com as meninas me incentivavam a ser homem em todos os sentidos. Tornaria um desafio para mim conhecer pessoas “comuns”, em situações do cotidiano, onde a periodicidade dos atos programados falha a um gesto sincero.

Aí, pulando algum espaço temporal, eu criara certo afeto por uma garota de programa. Mesmo ela saindo do quarto com qualquer bruto, e em seguida sentando-se à minha mesa para dizer um oi, mesmo assim ela me chamava a atenção. O jeito como ela falava, sorria ou se insinuava para outros caras me instigava; mas eu não queria-a como sexo por uma noite. Queria tê-la como mulher em sua completude. “Poderia abraçá-la? Poderia beijá-la? Teria nela confiança?”.

E alguns meses depois, tínhamos um plano semanal que dividia-a entre os dias que ela dedicava ao trabalho e os que o fazia para mim. Às vezes, os editores pagavam bem, e eu oferecia a ela jantares para agradar ao seu delicado ego feminino; outras, era ela quem me sustentava, me agradava, bajulava. Suas amigas se emocionavam, me ofereciam ménages, e outros presentes de coração, pois tinha tornado um herói do submundo. Um Batman. E mesmo combatendo em todos os primeiros dias contra meu ciúme masculino de posse, o ranger e o abrir da porta do apartamento no centro, na madrugada, indicando seu retorno, fazia-me lembrar que ela vinha em busca de algo que só entregara a mim. E eu, que só escrevia, dedicava a ela a minhas palavras escondidas outrora. Eu sabia como tê-la, e ela a mim. Éramos dois animai nos bicando, formando um 8 deitado, o símbolo do infinito.

E esse foi um sonho que até agora busco interpretação. As prostitutas são o símbolo do remédio de uma doença não diagnosticada. E quando essa doença for erradicada, elas serão tão veneradas quanto a sinceridade.