2 de outubro de 2004

Zona: região, local de voto, baderna, meretrício - parte I

Da última vez, enfrentei 2 horas de sol numa fila preenchida com ignorantes. Por isso, neste dia 3 de outubro eu levantei cedo para dirigir-me à escola onde voto. Sei que a galera já deve ter ao menos aprendido como é manejada a urna eletrônica, então era provável que não houvesse fila.
Desço a escada da garagem e vejo 5 folhetos jogados. Na calçada, 15. Mais à frente, 150. O bueiro já está saturado.
No peito, na estampa interna da camiseta, uma estrela vermelha com as letras do PSDB. Nas costas, um tucano do PT.
— Já sabe em quem ‘cê vai votar?
— Já sim, obrigado.
Eu e meus amigos não acreditamos em mudança. Não na política. É só uma troca de partidos e cusparadas.
— Toma, pega um santinho.
— Valeu, já tenho candidato.
Passo o primeiro farol da avenida. Há uma blitze do PT entregando jornais (a quarta edição de uma manobra eleitoral).
— Bom dia, vote...
— Já tenho candidato, valeu.
Primeiro saiu na Veja uma suposta conspiração de Emídio (PT) com Eymael (PSDC) para não colocar Délbio Teruel como vice de Celso Giglio (atual prefeito, PSDB). Depois, o segundo auê, recebi no trem um jornal do PT dizendo que abriram um processo contra o veículo.
— Não, obrigado, já tenho...
Ontem, no sábado 2, peguei na garagem uma terceira via das acusações, e era a do Celso Giglio, com notícias de que Emídio seria cassado da candidatura. E hoje, esperando o farol de pedestres abrir, tiro o pé da saideira de O Treze, que noticiava que não, Emídio não será cassado, e que tudo aquilo eram sintomas de desespero do tucano.
— Já, já tenho...
Com toda essa baderna, decidira o número de meu candidato: 99.
— Olá, vote no Didi...
A garota abordou-me com tal ímpeto, que quase que ela escorrega nos mesmos santinhos de seu candidato, que devido à calçada molhada serviram como cascas de banana. Mas ainda assim, sua mão encostou em meu peito.
— Vote no Didi, por favor, moço.
— Ela vai limpar isso aqui se ganhar?
Talvez não tivesse ouvido.
— Se limpar, eu voto nele.
A região ali tinha 3 escritórios de candidatos. Os familiares e amigos tornavam a avenida intransitável. E observando a rua à milanesa, lembrei-me que havia alguém — um amigo da família — que era candidato. Qual o número dele mesmo?
— Toma, irmão.
— Não, valeu.
— Ajuda aí, irmão.
— Não, valeu.
Fora apenas uma quadra desde casa. Resolvi economizar voz e andar silencioso, concentrado no caminho e pisando nos candidatos (atentem à metáfora do meu imaginário: tirando com o pé esquerdo os que grudavam no direito, e vice-versa). Mas o silêncio não adianta. Estamos num mundo onde o silêncio traz insegurança e desconfiança. O velho veio oferecendo cinco papéis ao mesmo tempo, e passei. Ele acompanhou-me, ainda estendendo o braço, e se não fossem os outros transeuntes de plantão eu teria acelerado o passo.
E os papéis ainda no meu peito.
— Não, valeu.
O velho largou-os ao chão.
Não olhei mais para os rostos. Concentrei-me no chão; sabia que alguma hora o meu possível candidato estaria lá jogado, com seu número estampado acima de alguma frase de efeito. “Sorria: você está votando consciente!” dizia um smile do poste. O candidato não pertencia à minha consciência até então.
— Moço, vota no nosso amigo aqui...
— Sim, voto.
Era o tal amigo de quem eu queria saber o número. Mas não era algo fácil para ser recordado; não para mim, que não faço nem questão de votar nem de memorizar números. Estava chegando próximo à zona eleitoral; mas não era aquela o meu destino. Sei que existe uma lei que define, a partir da porta da escola, 100 ou não sei quantos metros de espaço livre de boca de urna. Estava prestes a ultrapassar o limite; foi daí que eu lembrei o porquê de se chamar zona.
— Vote...
— Não, valeu.
— Moço...
— Não, valeu.
— Ó homem, vo...
— Não, valeu.
— Por favor, que horas...
— Não, valeu.
A rua tinha papas de papel molhado. Senti imensa raiva de todos os políticos eleitoreiros, todos com suas frases idiotas, todos com seus santos salvadores; lembrei então do carro de som que meu candidato colocou numa calçada de uma avenida. Tocava uma batida estilo balada jovem; lembrei também que seu discurso era igual aos outros; lembrei também da montagem que fizeram com ele ao lado de Giglio. Lembrei também que eu defendo o voto opcional. — Tem muita gente que não faz questão. Pra quê botar na mão dessa maioria o destino duma cidade?

(Pra quê bancar essa inocência?)
((Eu sei o porquê.))
Passei do raio limitante.
— Oi, pega um santinho...
— Valeu, já tenho.
Valeu? Obrigado? Obrigado o caralho! Lá vem outra pata!
— Oiiiii...
— Valeu.
— Nossa, que... Obrigada, viu!?

Vão à merda todos eles. Depois da Globo e o Collor, decidi não votar em ninguém que faça propaganda. Como saber, dentre as quatro edições de jornais acusativos, qual é o verdadeiro? Qual mente menos? Estou alheio à comunicação, e é tudo. Não confio em nada, e meu voto será sempre nulo.

— Um panfleto com as obras do Giglio...
— Fez sua obrigação.
— Um apito no Emídio.
— Sim, vou levar pro picadeiro.
— Vote em quem tem compromisso com a palavra.
— Sim, já reparei esse Apocalipse.
— Evangélicos, uni-vos!
— Tributos, idem!
— Não acreditas numa causa?
— Sim; a causa de tudo é deus.
— Que bom que és religioso.
— Deus é informação.
— Dados confirmam...
— Informação é dado analisado. E repassado.
— Justiça para todos!

Saí de perto, cheguei à minha zona, e vi gente “vendendo” voto. Entendi outro motivo para a palavra zona.Digitando 99, li na urna eletrônica “candidato errado”. Mas eu tenho a impressão de que, não importa quem vença, não haverá uma urna que diga ao todos “Candidato errado”.Mas tudo bem. A notícia é solução pra muita coisa.